segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

"O que é Isto - a Música?" - por Sidney Molina






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O QUE É ISTO - A MÚSICA?
Uma homenagem ao filósofo Martin Heidegger




Sidney Molina









O que acontece conosco quando ouvimos música? O que é isto que ouvimos, enquanto ouvimos música? O que é isto, a música?

Nosso interesse por música - considerando-se que seja um interesse real e não um hábito passageiro - nasce sempre a partir de uma experiência musical forte: algo aconteceu um dia "naquele show ou concerto", ou simplesmente ouvindo aquele CD em casa, ou assistindo a aquele programa na TV.

Falamos de um "interesse real": que queremos dizer com isso?

Para nós, aqui, um interesse real será o cultivo de um relacionamento com o mundo sonoro em si, isto é, tal interesse não será um entender a música como uma atividade social facilitadora da aproximação entre as pessoas e também não será, do mesmo modo, uma busca superficial de satisfação imediata, ou de entretenimento, ou de lazer. Podemos, através da música, trazer para a nossa proximidade certas pessoas, mas nunca "as pessoas" em geral. Do mesmo modo, se o interesse musical é apenas um meio para a satisfação imediata de desejos imediatos, à satisfação dos desejos seguir-se-á o desinteresse pelos meios (a história do show business está repleta de exemplos).

Falamos, no entanto, também, de uma "experiência musical forte". Mas podemos chamar de "experiências musicais" - enfrentemos a questão - a uma multiplicidade de fenômenos sonoros. Onde foi que tivemos nossas experiências musicais fortes?

Pode ter sido a visão-audição de Hendrix ou Coltrane tocando? Pode ter sido no interstício preciso entre a inteligência dos Beatles e a irreverência dos Stones? Ou foi em algum ponto entre a força distorcida heavy e a limpeza progressiva fusion? Mudando um pouco de prisma: pode ter sido também nos planos assimétricos de delicadeza conceitual e interpretativa de Pat Metheny, ou nas evocações multiculturais superpostas de McLaughlin? Pode ter sido ouvindo Miles Davis ou Michael Jackson? Pode ter sido ouvindo o cigano Django Reinhardt ou, por que não, a gravação que o violonista erudito inglês Julian Bream fez de um concerto com orquestra erudita que contém uma homenagem erudita de um compositor erudito ao mesmo cigano Django Reinhardt? Pode ter sido numa canção popular de Chico Buarque ou de Caetano Veloso? Ou num samba de Paulinho da Viola ou de João Bosco? Pode ter sido em Caymmi, Noel ou João Gilberto? Pode ter sido em Luiz Gonzaga? Por que não em Beethoven? Por que não em Charlie Parker? Por que não em Bach? Por que não em Duke Ellington? Por que não em Mozart, Schoenberg ou Bartok? Por que não a partir de um DVD do pianista russo Evgeny Kissin tocando Chopin ou Liszt, na assustadora maturidade de seus 27 anos de idade? Por que não ao ouvir a uma velhíssima fita cassete contendo uma gravação de um ensaio caseiro dos irmãos Abreu ao violão?

Não importa o que tenha provocado a experiência estética, pois, se ela foi suficientemente intensa, temos a impressão de que algo foi dito, de que algo "ficou". A experiência estética deixa marcas, deixa referências. A experiência estética é intrigante na medida em que ela nos retira da mesmice quotidiana de nossos afazeres, deixando-nos espantados diante de nós mesmos, de nossa condição humana, de nosso mundo.

Se nós não nos paralisarmos diante do espanto da experiência auditiva, se nós não nos desviarmos apressadamente dos sentidos da escuta atenta, muitas vezes decidiremos começar a estudar música. "Com belos sentimentos também faz-se má música", poderíamos dizer parafraseando André Gide. Não basta ter em mãos um enigma: é preciso também buscar decifrá-lo; não basta querer tocar ou compor (ou mesmo ouvir) música: é preciso saber fazê-lo.

Não caberá discutir os caminhos da pedagogia musical pois, nosso objetivo, aqui, será apenas não perder de vista a motivação essencial que leva alguém ao mundo das cifras, das tablaturas, das digitações, palhetadas, escalas e arpejos. Esperançosamente, a busca de compreensão poderá levar mais longe, quem sabe a um conceito coerente de sonoridade, a uma flexibilidade rítmica, a um controle da condução das frases musicais, à consistência da improvisação, à teoria musical, ao treinamento auditivo, à leitura e à escrita de música, à harmonia, ao contraponto, à análise musical, à composição, à história da música, etc. Aprender a estudar e gostar de estudar são gestos de humildade e respeito para com os impactos sonoros absorvidos pela percepção. Estudar música é cultivar nosso amor pela música: se não nos apaixonamos pelo estudo de música, é porque nossas experiências musicais ou não foram fortes o bastante para nos motivar, ou porque não estamos sendo dignos das oportunidades sonoras que nos estão sendo oferecidas. Somos responsáveis também pelas músicas que ouvimos.

Mas, chegando até este ponto, parece-nos que, no intuito de encontrar a música, nos perdemos na multiplicidade dos gêneros, dos estilos e das técnicas; constatamos que há uma experiência estética, mas não explicamos em que ela consiste; falamos que algo acontece conosco, mas não o que acontece. Ainda não sabemos o que é isto - a música.

Nosso caminho não nos levou para dentro da experiência musical. Falamos, apenas, sobre música. Falar sobre algo é e tem sido, já há algum tempo - desde que Martin Heidegger lançou no solo do pensar ocidental as sementes de sua interrogação filosófica - o que a expressão literalmente diz, a saber, um situar-se acima do assunto. Falar sobre música é querer estar acima da música e, portanto - necessariamente - fora dela.

Como podemos nos aproximar da música? Como podemos penetrar nela? Como podemos nos demorar nela? Como podemos submeter nosso comportamento às suas leis?

O caminho que proporemos é tão somente uma possibilidade, dentre muitas outras. Para ser um caminho real, nosso texto deve, inicialmente, abrir-se para a possibilidade de fracassar. Algo presente faz-nos supor que temos um caminho a trilhar na discussão proposta aqui. Chegamos a acreditar, inclusive - neste momento preciso em que estamos escrevendo -, que alcançaremos nosso objetivo. Não podemos, entretanto, garantir que assim será. Antecipamos idéias e guardamos conexões com o que já discutimos anteriormente. Tentamos nos concentrar com cada palavra, frase e idéia, mas não podemos apressar a condução do movimento do pensamento nem sua materialização na linguagem. O pensar tem sua melodia, sua harmonia, seu ritmo; tem também forma, métrica e cores; seu movimento pode ser acelerado ou ralentado; o pensar também dialoga consigo, é polifônico. O pensar lê e sabe improvisar.

Aqui precisamos de uma pausa: não é isto que, de alguma forma, almejávamos? A atenção para com a musicalidade do pensar não é, já, um estar na música e não mais sobre a música? E, se assim for: qual é a conexão entre pensamento e música?

É quase um lugar comum dizer que a música é a arte temporal por excelência. Ao contrário das chamadas "artes espaciais" (como a arquitetura, a escultura e a pintura), a relação da música com o tempo é interna e essencial. Que tipo de relação é essa? Como ocorre a percepção do tempo na música?

O assunto é amplo e complexo. Fixemos apenas alguns pontos decisivos.

Quando falamos em tempo, temos (pelo menos) duas dimensões a considerar: a primeira delas diz respeito à relação entre tempo presente, tempo passado e tempo futuro. Se o tempo presente, este aqui-agora, for o instante do ser presente, da presença, o passado - que já não é mais - e o futuro - que não é ainda - serão abstrações. Por outro lado, invertendo o argumento, podemos pensar que este presente é um nada evanescente e fugidio e, ao contrário, o passado e o futuro são o que resta de concreto, pois abrangem a cristalização da memória e a expectativa do porvir. Na música, a memória, por um lado, e a antecipação do que ainda não está soando, por outro, operam tanto quanto os sons que estão sendo instantaneamente ouvidos.

A segunda dimensão diz respeito à distinção entre tempo duração e tempo espacial. Segundo Bergson, o tempo duração é a experiência interna da temporalidade contínua e, o tempo espacial, a medida externa e descontínua dos intervalos temporais. Também na música podemos encontrar ambos os "tempos", já que temos tanto o movimento da música no tempo, com sua continuidade, quanto a estrutura temporal de durações sonoras e silenciosas, que é descontínua. Cada execução sonora está no tempo e é única (tempo duração), enquanto que a estrutura temporal de uma música contém em si um tempo finito, passível de ser repetido em diversas execuções sonoras sem deixar de ser ele mesmo (tempo espaço).

Mas essa breve análise pode revelar-se, neste momento, decisiva: se a disponibilidade para com a escuta musical pode levar-nos de uma maneira privilegiada a uma experiência tanto do estar no tempo (tempo duração) quanto do conter tempo (tempo espaço) e se, simultaneamente, a escuta atenta coloca a questão da presença, da fugacidade do instante, da memória e da previsão, é porque a música pode ser um caminho para lançar cada um de nós diante de seu próprio tempo, diante de sua mortalidade. Assim como vivemos a presença do presente como uma continuidade temporal inabalável (estamos no tempo), sofremos a ação espacializante e desgastante da passagem irreversível "dos anos que não voltam mais" (temos um tempo).

Diante da experiência real da finitude, abre-se um momento existencial de extraordinária liberdade, propício a deixar pistas para serem decifradas no dia-a-dia. Cada músico e cada música de verdade têm seu próprio modo de dizer mostrando e de mostrar dizendo e cada ouvinte de verdade deve ser alguém forte o suficiente para enfrentar as contradições dessa experiência e aprender com ela.

Querer revelar o isto que a percepção musical instaura é, no entanto, já perdê-lo; é transformá-lo num aquilo. Santo Agostinho, que testemunhou - há mais de 1600 anos - uma das mais antigas manifestações musicais da Era Cristã, a saber, o Canto Ambrosiano, formulou de forma definitiva a natureza paradoxal de nossa condição temporal. Ouçamos sua voz como uma tentativa de manter viva a questão O que é isto - a música:

Que é, pois, o tempo? Se ninguém me perguntar, sei; se quiser explicar a quem me pergunta, não sei.