domingo, 25 de maio de 2008

Hino às Musas - A Teogonia de Hesíodo

























O Hino às Musas (vv. 1-115, Teogonia - Hesíodo)


Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar.
Elas têm grande e divino o monte Hélicon,
em volta da fonte violácea com pés suaves
dançam e do altar do bem forte filho de Crono.
Banharam a tenra pele no Permesso
ou na fonte do Cavalo ou no Olmo divino
e irrompendo com os pés fizeram coros
belos ardentes no ápice do Hélicon.
Daí precipitando-se ocultas por muita névoa
vão em renques noturnos lançando belíssima voz,
hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera
de Argos calçada de belas sandálias,
Atena de olhos glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o luminoso Apolo, Ártemis verte-flechas,
Posídon que sustém e treme a terra,
Têmis veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de áurea coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande Sol, a Lua brilhante,
Leto, Jápeto, Crono de curvo pensar,
Terra, o grande Oceno, a Noite negra
e o sagrado ser dos outros imortais sempre vivos.
Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto
quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.
Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas
Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:
"Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações".
Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,
por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso
colhendo-o admirável,e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado,
impeliram-me a hinear o ser dos imortais sempre-vivos
e a elas primeiro e por último sempre cantar.
Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra?
Eia!pelas musas comecemos, elas a Zeus Pai
hineando alegram o grande espírito no Olimpo,
dizendo o presente, o passado e o futuro
vozes aliando. Infatigável flui o som
das bocas, suave. Brilha o palácio do pai
Zeus troante quando as vozes liriais das Deusas
espalha-se, ecoa a cabeça do Olimpo nevado
e o palácio dos imortais. Lançando voz imperecível
o ser venerando dos Deuses primeiro gloriam no canto
dês o começo: os que a Terra e o Céu amplo geraram
e os deles nascidos Deuses doadores de bens,
depois Zeus pai dos Deuses e dos homens,
no começo e fim do canto hineiam as Deusas
o mais forte dos Deuses e maior em poder,
e ainda o ser dos homens e dos poderosos gigantes.
Hineando alegram o espírito de Zeus no Olimpo
Musas olímpiades virgens de Zeus porta-égide.
Na Piéria gerou-as, da união do Pai Cronida,
Memória rainha nas colinas de Eleutera,
para oblívio dos males e pausa para aflições.
Nove noites teve uniões com ela o sábio Zeus,
longe dos imortais subindo ao sagrado leito.
Quando girou o ano e retornaram as estações
com as mínguas das luas e muitos dias findaram,
ela pariu nove moças concordes que dos cantares
têm o desvelo no peito e não-triste ânimo,
perto do ápice altíssimo do nevoso Olimpo,
aí os seus coros luzentes e belo palácio.
Junto a elas as Graças e o Desejo têm morada
nas festas, pelas bocas amável voz lançando,
dançam e gloriam a partilha e os hábitos nobres
de todos os imortais, voz bem amável lançando.
Elas iam ao Olimpo exultantes com a bela voz,
imperecível dança. Em torno gritava a terra negra
ao hinearem, dos pés amável ruído erguia-se
ao irem ao seu pai. Ele reina no Céu
tendo consigo o trovão e o raio flamante,
venceu no poder o pai Crono, e aos imortais
bem distribuiu e indicou cada honra;
isto as Musas cantavam, tendo o palácio olímpio,
nove filhas nascidas do grande Zeus:
Glória, Alegria, Festa, Dançarina,
Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste
e Belavoz, que dentre todas vem à frente.
Ela é que acompanha os reis venerandos.
A quem honram as virgens do grande Zeus
e dentre os reis sustentados por Zeus vêem nascer,
elas lhe vertem sobre a língua o doce orvalho,
e palavras de mel fluem da sua boca. Todas
as gentes o olham decidir as sentenças
com reta justiça e ele firme falando na ágora
logo à grande discórdia cônscio põe fim,
pois os reis têm prudência quando às gentes
violadas na ágora perfazem as reparações
facilmente, a persuadir com brandas palavras.
Indo à assembléia, como a um Deus o propiciam
pelo doce honor e nas reuniões se distingue.
Tal das musas o sagrado dom aos homens.
Pelas Musas e pelo golpeante Apolo
há cantores e citaristas sobre a terra,
e por Zeus, reis. Feliz é quem as Musas
amam, doce de sua boca flui a voz.
Se com angústia no ânimo recém-ferido
alguém aflito mirra o coração e se o cantor
servo das musas hineia a glória dos antigos
e os venturosos Deuses que têm o Olimpo,
logo esquece os pesares e de nenhuma aflição
se lembra, já os desviaram os dons das Deusas.
Alegrai, filhas de Zeus, dai ardente canto,
gloriai o sagrado ser dos imortais sempre vivos,
os que nasceram da Terra e do Céu constelado,
os da Noite trevosa, os que o salgado Mar criou.
Dizei como no começo Deuses e Terra nasceram,
os Rios, o Mar infinito impetuoso de ondas,
os Astros brilhantes e o Céu amplo em cima.
Os deles nascidos deuses doadores de bens
como dividiram a opulência e repartiram as honras,
e como no começo tiveram o rugoso Olimpo.
Dizei-me isto, ó Musas que tendes o palácio olímpio,
dês o começo e quem dentre eles primeiro nasceu.


Tradução: J.A.A.Torrano in: HESÍODO.Teogonia, a Origem dos Deuses. Estudo e tradução: J.A.A.Torrano. Iluminuras,2006.


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Hesíodo e Homero estão nos umbrais da história grega e foi como aedos que compuseram suas canções transmitidas de geração a geração

Jaa Torrano


Muitos séculos antes de se adaptar a escrita fenícia à língua grega e de se criar assim esse prodigioso instrumento de comunicação, que é o alfabeto, os aedos gregos já compunham e sabiam de cor muitas e longas canções. Aedo em grego antigo significa "cantor"; os aedos eram os poetas que, antes da invenção do alfabeto, praticavam o culto da deusa Memória e das musas e recebiam dessas divindades o dom de compor canções ao som da lira.

Posteriormente, com a popularização do alfabeto, essas canções foram escritas e os aedos desapareceram, e aos poucos deixou-se de cultuar a deusa Memória. Mas é daquela época remota que nos chegaram, entre outras canções, a Ilíada e a Odisséia, cujo autor os gregos acreditavam ter sido Homero, um aedo da rica região da Jônia, Ásia Menor, no século 8 a. C.

Contemporâneo de Homero, um outro aedo chamado Hesíodo, que viveu na Beócia, região norte da Grécia continental, transmitiu-nos também importantes canções. Hesíodo e Homero estão nos umbrais da história grega, pois é a partir da época em que viveram que se divulgou mais intensamente o uso da escrita na Grécia. Mas foi como aedos (e não como escritores) que eles compuseram suas canções: inspirados pelas deusas musas, guiados pela deusa Memória, e servindo-se de técnicas de composição oral que durante séculos foram transmitidas de geração a geração.

Uma das canções de Hesíodo conta-nos como o mundo surgiu a partir dos primeiros Deuses, dos amores e das lutas entre os deuses. Os mestres-escolas da Grécia clássica chamaram essa canção de Hesíodo Teogonia, que significa em grego "nascimento de deus" ou "dos deuses". Esse nome teve tanto sucesso que até hoje essa canção é chamada assim.
Os mestres-escolas gregos utilizavam-na para ensinar a ler e escrever: eles faziam leves marcas de letras em uma tabuinha de cera mole e mandavam a criança reforçar as marcas, tornando as letras bem visíveis, e depois explicavam o sentido dos versos assim escritos. A Teogonia constituía, com os poemas de Homero, a cartilha por onde os gregos aprendiam a ler, a pensar, a entender o mundo e a reverenciar o poder dos deuses.

A deusa Memória e suas filhas


O aedo Hesíodo preludia o seu canto sobre o nascimento do mundo com um hino às musas, em que conta como a sua vocação de poeta foi despertada por uma aparição dessas deusas. Ele pastoreava ovelhas no sopé do monte Hélicon, quando as deusas se apresentam a ele com as palavras: "Sabemos dizer muitas mentiras semelhantes aos fatos, mas sabemos, se queremos, fazer ouvir a verdade" ( Teogonia, vv. 27-8).

As musas então fizeram dele um vidente capaz de conhecer as coisas presentes, passadas e futuras, e ensinaram-no a cantar, para que ele cantando celebrasse os deuses imortais, as façanhas dos homens antigos e também a elas próprias no começo e no fim das canções. Deram-lhe um ramo de loureiro, cortado de modo a servir de cetro ("cetro" é um bastão que entre os gregos antigos era sinal de legitimidade, eficácia ou veracidade da palavra dos que o empunhavam: os reis, os arautos e os aedos).
Depois de relatar essa visão que o assinala como um servo eleito das musas, Hesíodo descreve essas deusas a cantar no palácio de Zeus a mesma história que é o tema de sua canção: o nascimento dos deuses, do mundo e da ordem imposta por Zeus ao universo.

As musas, portanto, são as cantoras divinas, cujo poder onisciente de cantar os acontecimentos presentes, passados e futuros é por elas outorgado aos cantores humanos, seus servidores. Os diversos aspectos e funções do canto do aedo são indicados pelos nomes das musas: Glória, Alegria, Festa, Dançarina, Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste e Bela-voz.

Por serem filhas do deus supremo, elas estão ligadas ao exercício do poder, protegem os reis justos quando estes devem falar e impor ao povo suas decisões e sentenças, e dão aos cantores palavras verdadeiras. Por serem filhas de Memória, elas detêm o conhecimento do que foi, do que é e do que será. E, por serem moças, têm a beleza, a sensualidade e o poder de sedução próprio do gênero feminino.

Os deuses e o mundo


Na Teogonia de Hesíodo, o mundo surge com o nascimento dos numerosos deuses que o constituem. Esse conjunto de inumeráveis deuses, com os seus privilégios às vezes por demais exclusivos, é governado pelo poder e sabedoria suprema de Zeus. O que o poema conta, fundamentalmente, são os antecedentes, a preparação e constituição dessa ordem imposta por Zeus à disparidade e antagonismo das forças divinas que compõem o mundo.

Na origem do universo, estão três deuses primordiais: Caos, Terra e Eros. A deusa Terra é o assento sempre firme de todas as coisas, o fundamento inabalável. Primeiro ela gera sozinha (por cissiparidade) um outro ser, igual a ela, o deus Céu, para que também ele seja o assento sempre firme e todos os deuses e para que a cubra toda ao redor. E depois, sozinha, gera as altas Montanhas e o Mar impetuoso.

Há três grandes linhagens divinas: a descendência do Caos, a do Mar e a do Céu. Do Caos provêm todos os males que atormentam a vida humana; os mais importantes deles são os terríveis filhos da deusa Noite. Na família do deus Mar há monstros de estranhas formas compósitas, que habitam as águas marinhas e as regiões subterrâneas. Na família do Céu há a sucessão dos reis divinos Cronos e Zeus.

História do Céu e de Cronos


A primeira fase do mundo é o reinado do Céu.

O Céu fecundo e ávido de amor, com suas contínuas e incessantes uniões com a Terra, impede que sua prole venha à luz. Atulhada com tantos filhos dentro de si, a Terra prodigiosa gemia enquanto o Céu se alegrava em sua perversidade.

A Terra tramou um ardil: criou o gênero do grisalho aço, forjou um grande podão e perguntou a seus filhos qual deles queria fazer o Céu pagar pelo ultraje. Só o mais novo deles, o deus Cronos, aceitou o desafio proposto pela mãe. Com alegria, ela o colocou oculto em uma tocaia. Quando o grande Céu se aproximou desejando amor, o filho agarrou as partes genitais com a mão esquerda, com a direita cortou-as com a enorme foice e lançou-as a esmo para trás.

Dos salpicos de sangue caídos sobre a Terra nasceram as divindades da vingança: as cruéis Erínias, os Gigantes guerreiros e as Ninfas chamadas Freixos (arbustos de cuja haste duríssima se faziam as lanças).

O membro decepado caiu no mar e aí flutuou por muito tempo. Da espuma que ele ejaculou, formou-se uma virgem. Quando ela saiu das ondas, na ilha de Chipre, a relva florescia sob seus pés: era Afrodite, a deusa do Amor e do Desejo.


O nascimento de Zeus

A segunda fase do mundo é o reinado de Cronos.

Ele desposa a sua irmã Réia e dela teve três filhas (Héstia, Deméter e Hera) e três filhos (Hades, Posídon e Zeus). Mas tão logo cada um deles nascia, Cronos os engolia, para evitar que houvesse outro rei em seu lugar. Uma profecia da Terra e do Céu o avisara de que era seu destino ser destronado por um filho e ele engolindo-os prevenia-se.

Quando Réia devia dar à luz Zeus, ela suplicou a seus pais, Terra e Céu, que lhe aconselhassem um ardil para que ela pudesse salvar esse filho. Eles atenderam a sua súplica e, encoberta pela noite, Réia escondeu seu filho em uma gruta em Creta, confiando-o à deusa Terra, para que ela o nutrisse e criasse. Seguindo as instruções de seus pais, Réia envolveu uma grande pedra em um cueiro e entregou-a ao soberano Cronos. Tomando-a nas mãos, o deus implacável meteu-a ventre abaixo, sem desconfiar de nada.

Zeus cresceu rapidamente, libertou das prisões subterrâneas os seus tios paternos Ciclopes e Centímanos, e aliando-se a eles travou contra seu pai Cronos a luta pelo poder. Vencido, o velho deus Cronos vomitou primeiro a pedra por último engolida. Zeus a cravou em Delfos, para que os homens mortais aí a admirassem.

O reinado de Zeus


Após a vitória sobre seus inimigos, Zeus é aclamado por seus aliados rei dos deuses e dos homens. Assim fez a partilha dos bens e fixou os privilégios de cada deus. É a terceira fase do mundo, a atual e a mais perfeita de todas. Com uma série de casamentos, que eram verdadeiras alianças políticas, Zeus organizou o seu reinado e tornou o seu poder inabalável.

Os filhos que Zeus teve com suas diversas esposas representam a harmonia, a ordem, a justiça, o esplendor e a glória do reinado cósmico de Zeus. Entre eles, estão as nove musas, que dão aos aedos o divino poder das canções.


Jaa Torrano é professor Titular de Língua e Literatura Grega na Universidade de São Paulo (USP). É autor de O sentido de Zeus. O Mito do Mundo e o Modo Mítico de Ser no Mundo. (São Paulo, Iluminuras, 1996), publicou ainda traduções, além de artigos e estudos sobre literatura grega clássica em livros, revistas e periódicos especializados


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#para saber mais:
Capítulos
I, II e III de Torrano (ensaio introdutório à Teogonia de Hesíodo)

#fontes:

-Primeiros Escritos

-Revista Cult