sábado, 6 de setembro de 2008

História da Música Ocidental - Capítulo 1, parte 1.2b. Epitáfio de Seikilos - Fragmento do Orestes de Eurípides





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Epitáfio de Seikilos — Stasimon do Orestes (fragmento)


Apesar das contradições e imprecisões que dificultam o trabalho do estudioso dos textos antigos sobre música, há uma correspondência assinalável entre os preceitos teóricos de Aristóxeno a Alípio e os fragmentos musicais que sobreviveram. Dois de entre estes prestam-se a ser estudados com algum pormenor: o epitáfio de Seikilos (NAWM 2) e um coro do Orestes de Eurípides (NAWM 1).

Ambos os exemplos ilustram até que ponto os escritos teóricos podem servir de guia para a compreensão dos recursos técnicos da música grega que subsistiu até aos nossos dias. Os sistemas tonais descritos na literatura parecem ter aplicação na música escrita e poderão ter sido igualmente fundamentais para a música mais corrente que não ficou registada por escrito. Entretanto, convém lembrar que, se Eurípides escreveu a música do fragmento do Orestes, fê-lo quase um século antes de Aristóxeno e de outros autores começarem a analisar o sistema de tons. Por conseguinte, não é de admirar que esse fragmento não se harmonize tão bem com a teoria. Se a canção de Seikilos está mais de acordo com a teoria, talvez seja porque a teoria orientou a sua composição.



NAWM 2 — Epitáfio de Seikilos

O epitáfio de Seikilos, embora seja o mais tardio dos dois exemplos, será examinado em primeiro lugar, uma vez que está completo e apresenta menos problemas analíticos. O texto e a música estão inscritos numa estela ou pedra funerária encontrada em Aidine, na Turquia, próximo de Trales, e datam, aproximadamente, do século I d. C. Todas as notas da oitava mi-mi', com Fá sustenidos e Dó sustenidos (v. exemplo 1.5), entram na canção, de forma que a espécie de oitava é inequivocamente identificável como aquela a que Cleónides deu o nome de frígia, equivalente a escala de Ré nas teclas brancas de um piano. A nota que mais se destaca é o lá, sendo as duas notas extremas mi e mi'. A nota lá é a mais frequente (oito vezes), e três das quatro frases começam com ela; mi' é a nota mais aguda das quatro frases e repete-se seis vezes; mi é a nota final da peça. De importância subsidiária são sol, que encerra duas das frases, mas é omitido no fim, e ré', que é a última nota de outra das frases.

A importância do lá é significativa, porque se trata da nota central, ou mese, do sistema perfeito completo. Em Problemas, obra atribuída a Aristóteles (mas que poderá não ser inteiramente da sua autoria), afirma-se o seguinte: "Em toda a boa música o mese repete-se com frequência, e todos os bons compositores recorrem frequentemente ao mese, e, se o deixam, é para em breve voltarem a ele, como não o fazem com mais nenhuma nota[1]."

A oitava mi-mi', com dois sustenidos, é um segmento da dupla oitava Si-si', identificada por Alípio como correspondendo ao tonos diatónico iástico, uma forma menor do modo frígio que é também conhecida pelo nome de tonos jónico (v. exemplo 1.5 e figura 1.1). Este tonos transpõe o sistema perfeito maior para um tom inteiro acima da sua localização natural, hipolídia, em Lá-lá', na notação de Alípio. A identidade do tonos, porém, não parece ser essencial a estrutura da peça, pois os tons que nela mais se destacam, lá e mi, funcionam nesse tonos como lichanos meson e paranete diezeugmenon, ambos instáveis (v. exemplo 1.3). Na escala tética, em contrapartida, as notas mi, lá e mi' são hypate meson, meson, mese e nete diezeugmenon, todas notas estáveis, e a espécie de quinta lá-mi', que domina a maior parte da peça, bem como a espécie de quarta mi-lá, que prevalece no final, dividem a espécie de oitava em duas metades consonantes.


Exemplo 1.5 — Epitáfio de Seikilos (transcrição)





Foi possível analisar a estrutura tonal desta breve canção segundo os critérios explanados pelos teóricos. No que diz respeito ao etos da canção, pode dizer-se que não é eufórico nem depressivo, mas sim equilibrado entre os dois extremos, o que está em harmonia com o tonos jónico. Na ordenação dos quinze tonoi segundo Alípio, o jónico, com proslambanomenos em Si e mese em si, ocupa um lugar intermédio entre o mais grave, o hipodórico, com proslambanomenos em Fá e mese em fá, e o mais agudo, o hiperlídio, com proslambanomenos em sol e mese em sol'. As terceiras maiores dariam ao ouvinte de hoje, e provavelmente também ao da época, uma impressão de alegria, tal como a quinta ascendente de abertura. A mensagem do poema é, com efeito, optimista.

Estela funerária de Aidine, próximo de Trales, na Ásia Menor.

Tem inscrito um epitáfio, uma espécie de escólio ou canção de bebida,

com notação melódica e rítmica; o autor é identificado

nas primeiras linhas como sendo Seikilos.

Datação provável: século I d. C.

(Copenhaga, Museu Nacional, n.º 14 897 de inventário)




Figura 1.1 — Análise da inscrição de Seikilos


A canção de Seikilos teve especial interesse para os historiadores devido a clareza da sua notação rítmica. As notas sem sinais rítmicos por cima das letras do alfabeto equivalem a uma unidade de duração (chronos protos); o traço horizontal indica um diseme, equivalente a dois tempos, e o sinal horizontal com um prolongamento vertical do lado direito é um triseme, equivalente a três tempos. Cada verso tem doze tempos.



NAWM 1 — Eurípides, Orestes (fragmento)

O fragmento do coro do Orestes de Eurípides chegou até nós num papiro dos séculos III ou II a. C. Calcula-se que a tragédia seja de 408 a. C. É possível que a música tenha sido composta pelo próprio Eurípides, que ficou famoso pelos seus acompanhamentos musicais. Este coro é um stasimon, uma ode cantada com o coro imóvel no seu lugar na orquestra, zona semicircular entre o palco e a bancada dos espectadores. O papiro contém sete versos com notação musical, mas só subsistiu a parte central dos versos; o início e o fim de cada verso vêm, por conseguinte, entre parênteses no exemplo 1.6. Os versos do papiro não coincidem com os do texto. Chegaram até nós quarenta e duas notas da peça musical, mas faltam muitas outras. Por conseguinte, qualquer interpretação terá forçosamente de se basear numa reconstituição.

A transcrição é dificultada pelo facto de certos signos alfabéticos serem vocais enquanto outros são instrumentais, sendo alguns enarmónicos (ou cromáticos) e outros diatónicos (v. exemplo 1.6 e figura 1.2). A presente criação apresenta os intervalos densos como sendo cromáticos, mas, alterando o "matiz", estes poderiam ser igualmente transcritos como enarmónicos do tipo mais denso.



Exemplo 1.6 — Stasimon do Orestes (fragmento)


As notas que subsistiram enquadram-se no tonos lídio de Alípio. As três notas mais graves do tetracorde diezeugmenon são separadas pelo tom de disjunção do tetracorde meson cromático, que, por seu turno, surge conjunto com o tetracorde hypaton diatónico, do qual apenas são usadas as duas notas superiores. A peça parece, assim, ter sido escrita num género misto. A espécie de oitava ou harmonia é, aparentemente, a frígia, mas duas harmonias apresentadas pelo teórico musical e filósofo Aristides Quintiliano (século IV d. C.) como datando do tempo de Platão — a dórica e a frígia da sua classificação — coincidem quase exactamente com a escala que aqui encontramos, como se vê na figura 1.2.



No stasimon o coro das mulheres de Argos implora aos deuses que tenham piedade de Orestes, que seis dias antes de a peça começar assassinou a mãe, Clitemnestra.

Ele combinara com a irmã Electra punir a mãe por ter sido infiel ao pai, Agamémnon. O coro pede que Orestes seja libertado da loucura que se apossou dele desde o momento do crime. O ritmo da poesia, por conseguinte da música, é dominado pelo pé docmíaco, que era usado na tragédia grega em trechos de intensa agitação e sofrimento. O docmíaco combina três sílabas longas com duas breves, sendo muitas vezes, como sucede aqui, uma das sílabas longas substituída por duas mais breves, de forma que, em vez de cinco notas por pé, temos seis. No exemplo 1.6 os pés são separados por barras verticais nos símbolos que assinalam o "ritmo do texto" para cada linha do papiro.

O texto cantado é interrompido por sons instrumentais, sol' nos versos 1 a 4, e mi-si nos versos 5 e 6. O hypate hypaton (lá) é o tom que mais se destaca, pois dois dos versos (os versos 1 e 3, pontuados pela nota instrumental sol) terminam nessa nota e várias frases da melodia organizam-se em torno do paramese mi'; tanto lá como mi são notas estáveis no tonos lídio e são os tons mais graves dos dois tetracordes utilizados na peça (v. figura 1.2)[2].




Fragmento em papiro com trecho do

coro de Orestes (Eurípides),
ca. 200 a.C., transcrito em NAWM 1.

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Notas:

[1] Aristóteles, Problemas, 19.20 (919a).
[2] V. análise rítmica deste fragmento em Thomas J. Mathiesen, “Rhythm and meter in ancient Greek music”, in Music Theory Spectrum, 7, 1985, 159-180, donde são extraídos os exemplos 1.5 e 1.6.



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Epitáfio de Seikilos:
Gravação - versão 1 , versão 2 , versão 3
Orestes - Eurípides:
Gravação - versão 1 , versão 2
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