sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Musicologia e Interpretação: Teoria e Prática



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Musicologia e Interpretação: Teoria e Prática


por: Régis Duprat


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RESUMO: O presente artigo aborda a música como um ato interpretativo que nos transforma. Fundamenta-se em Gadamer que afirma haver uma fusão de horizontes no ato interpretativo. Mostra a história da música nos séculos XV e XVI até a contemporaneidade discutindo a simbiose entre a teoria e a prática.


PALAVRAS – CHAVES: musicologia, interpretação, música.


ABSTRACT: This article deals with music as an interpretative act that transforms us. Fundamenta himself in Gadamer says that there is a fusion of horizons in the interpretative act. It shows the history of music in the fifteenth and sixteenth centuries to the contemporary discussing the symbiosis between theory and practice.


KEY – WORDS: musicology, interpretation, music



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Abrir a nossa sensibilidade para um tema, lacônico que seja, já é proceder a um vastíssimo ato de interpretação, já é nos introduzirmos no universo infinito e multifacetado da pré-compreensão das coisas. Porque nós já estamos sempre previamente inseridos dentro desse estar-aí no mundo da música; porque aprender música já constitui, desde antes de seu início pedagógico, um gigantesco passo de interpretação, pois nenhuma interpretação é possível sem que cotizemos a nossa pré-compreensão de alguma coisa com os desafios permanentes a que o estar-aí no mundo da música nos convida, nos constrange, nos condiciona. Eis porque o ato interpretativo nos transforma. Gadamer, o grande nome da hermenêutica filosófica contemporânea (Gadamer, 1990), diz que na interpretação dá-se uma fusão de horizontes, ou melhor, ela consiste necessariamente numa fusão de horizontes, fusão que no nosso caso consiste no diálogo com a obra que interpretamos ou nos dispomos a interpretar. Gadamer desenvolve a noção de círculo hermenêutico, de Heidegger, ou seja, o reconhecimento da permanente e constante vigência da situação hermenêutica; a condição interpretativa é uma condição existencial, inerente à própria vida, ao compreender. Viver e compreender a música são igualmente atos continuadamente interpretativos. Mas a interpretação não é um processo através do qual chegamos à versão definitiva de uma coisa. Fazendo “blague”, diríamos que a versão a que chegamos é definitivamente provisória...


Desde o início do século dezenove, século em que se consagrou o historicismo, a civilização ocidental despertou para a música do seu passado. De longa data dedicam-se as Sociedades de Concertos de Música Antiga à interpretação da música da Idade Média, dos séculos XV e XVI, épocas em que o rigor da instrumentação e da execução era uma preocupação muito relativa. No decorrer do século dezenove as pesquisas, estudos e especulações sobre o passado musical gradualmente recuaram no tempo, culminando, no final daquele século, nas descobertas importantes sobre a Ars Nova, do início do século XIV. Hoje, que adentramos o século XXI, o antigo já alcança o século XVIII, abarcando todo o período barroco. Mas o problema não se reduz ao que se costuma ouvir em matéria de execução, ou seja, contingentes orquestrais e/ou vocais gigantescos executando obras escritas originariamente para pequenos conjuntos de câmara, e cuja sonoridade assim obtida é de duvidosa validade histórica; ou mesmo se devem usar-se instrumentos originais de época, determinando a redução do volume de acompanhamento por razões de sonoridade. Geralmente escudam-se na propriedade estilística. Estilo, porém, também não se reduz a problemas de sonoridade; é uma coisa muito mais complexa; resulta de uma elaboração contra o acaso. Apesar de não se pretender um modelo matemático de estilo, diríamos, com Gilles Granger, (1974) que se trata, pelo menos, de aplicar aos fatos de estilo elementos que permitam estabelecer uma orientação para a análise efetiva dos casos concretos e até sugerir, em certos casos, o estabelecimento de verdadeiros modelos. Nos fatos de estilo, muito mais do que a sonoridade dos instrumentos de época, há outros parâmetros pertinentes como o tempo e o andamento, a interpretação das alterações rítmicas praticadas convencionalmente na época, a solução dos ornamentos, a agógica e a realização do baixo cifrado, e muitos outros cuja execução até causaria estranheza hoje.

Até agora não surgiu um corpo teórico, abrangente e consistente, tentando listar os elementos que se trata de reformular. O próprio uso de instrumentos originais nem sempre é coisa meridiana; qual o instrumento de teclado para o qual foi escrita uma peça: cravo, órgão, clavicórdio, fortepiano ou lautenclavicembalo? Com os demais instrumentos de corda e sopro ocorre o mesmo problema. Mas as especulações e experimentos interpretativos encarados como alternativas e não como apaixonada exclusividade, só poderão contribuir para enriquecer a visão do problema da interpretação de época. Igualmente, não podemos repudiar em bloco as contribuições interpretativas anteriores só porque descobrimos, por pesquisa, convincentes aspectos em que a prática original era diversa. Em certo sentido, nossa visão dos estilos, historicamente elaborada, é inseparável da evolução histórica que teve essa mesma visão.


Concordemos, entretanto, com as especulações quando elas refletem pesquisa competente e inteligente sobre problemas de expressão, sonoridade, ritmo, andamento e tempo, agógica, ornamento, fraseio, dinâmica, baixo contínuo e/ou cifrado etc.. Pois também ocorre que muita gente que não tem nenhuma proposta, e tende a inovar no modismo vazio, propondo novas extravagâncias. A crítica deve estar alerta para debater, pois não se trata de cercear a liberdade de expressão...


O problema fundamental parece ser o das limitações naturais da notação musical, da exata correspondência desta com a execução original; da execução original com a atual. A consciência disso é coisa muito recentemente conquistada, porque nas artes do som especificamse formas existenciais não cognoscíveis em sua plenitude perceptiva senão através do seu registro sonoro. A grafia musical constitui, então, um verdadeiro metacódigo (não um subcódigo) a cujo acesso só se permitem os iniciados, e dentre estes, em geral, que são os músicos, há os especializados nas execuções de época. Ora, o barroco não primou por manter o intérprete numa camisa-de-força, tendência forte da música moderna no princípio do século XX, na qual pouca coisa resta ao intérprete além de cumprir fielmente o projeto realizado pelo compositor. Diga-se de passagem que essa postura já havia inspirado João Sebastião Bach (1685- 1750) na própria codificação sistematizada da realização dos ornamentos em sua música.


A introdução do áleas, o aleatório, na música moderna, reverteu essa tendência iniciada já no barroco. Passados os tempos, foram surgindo novos estilos; evolaram-se as tradições de improvisação e o executante atual, ao retomar a interpretação daquela música, vê-se cruamente diante da obra escrita, às vezes de um esqueleto, de um esquema da notação musical que não representa inteiramente a música viva daquele período. Defronta-se, inclusive, com uma visão adulterada que pode conduzi-lo a ver a música escrita como rigorosamente inalterável. O intérprete, como diz Thurston Dart (1960), tornou-se prisioneiro do passado; e também das interpretações-chave das obras do passado.


O problema se agrava ainda mais quando transcendemos os aspectos técnicos para abordar, na interpretação, a teoria das paixões, dos afetos, e sua evolução. Os autores de época falam muito de “paixão dominante” em um texto musical; dela se desdobrariam todas as demais formulações técnicas de interpretação. Quantz (Johan Joachin, 1697-1773), o grande teórico do século XVIII, fonte inesgotável de sugestões, dizia, em 1752 (Strunk, 1952), que uma boa execução deve ser cheia de variedade, opor luz e sombra, mudanças de forte e piano etc.. Se colhermos em nosso período colonial brasileiro, depoimentos do mesmo âmbito, posso citar um
exemplo que nos calha bem: o de André da Silva Gomes (1752-1844), mestre-de-capela da Sé de São Paulo entre 1774 e 1823, que no seu notável tratado denominado “Arte Explicada de Contraponto”, (Duprat et al. 1998), que como os similares europeus da época constituíam verdadeiros tratados de composição, destaca, enfática e preliminarmente, na primeira página e lição do tratado, uma lúcida distinção entre contraponto e composição: o primeiro seria a invenção da harmonia das partes e a segunda, a invenção das partes individuais; o contraponto são as regras e a composição é a fantasia... Para ele o preceito da variedade também é prioritário, pois evita, na música, os motivos fastidiosos. As dissonâncias são-lhe preceito salutar (Lição 9), pois com elas a música se torna mais deleitável e até realçam-se as espécies consonantes.


Aqui se levanta o aspecto mais pertinente, que é o da edição, da transcrição ou revisão de obras do passado, verdadeira intermediação ente o original e o intérprete, e que nem sempre, na História, contribuiu positivamente para esclarecer – em vez disso, confundiu e às vezes continua confundindo. Esse próprio mister já possui uma tradição. As edições conhecidas e consagradas pela interpretação resultam de mais de século e meio de movimento editorial, pois até o princípio do século XIX não surgira o interesse pela música do passado. Foi o romantismo que redescobriu os trovadores; Felix Mendelssohn (1809-1847) a João Sebastião Bach. Guillaume de Machault (1300-1377) e a Ars Nova são recuperados a partir de 1893; as edições eruditas das décadas de 1910 e 1920 recuperam a memória de Gillaume Dufay (1400-1474), Jean de Ockeghem (1430-
1495), Josquin dès Prés (1440-1521) e outros polifonistas dos séculos XV e XVI; muitos deles ainda aguardam a sua vez... Antes mesmo de Curt Sachs (1881-1959) se sensibilizar pela aplicação, no campo da música, das designações cronológicas e morfológicas que Heinrich Wölfflin cometera às artes visuais e à arquitetura do período barroco, Arnold Dolmetsch (1946), lança em 1916 o seu livro de interpretação da música dos séculos XVII e XVIII. Já se vê que, apesar de tudo, a tradição de interpretação é acentuadamente recente e jovem. Por isso, talvez, o encanto do seu arrebatamento deslumbrado e juvenil...


Lembremos as palavras de Thurston Dart (1960) em A Interpretação da Música: “A música é ao mesmo tempo uma arte e uma ciência; como toda arte e toda ciência não tem nenhum inimigo salvo a ignorância”. Para interpretar o barroco não basta formar conjuntos pequenos ou eleger instrumentos originais; é preciso muito mais do que isso, como dissemos anteriormente.


De alguma forma nos defrontamos, nesta altura, com um problema que não é outro senão o da contraposição de teoria e prática, de racionalidade e sensibilidade. Sustentar que o artista não se prestaria ao raciocínio sistemático e ao trabalho cientificamente conduzido; de que a função do artista seria limitada a intuir e a expressar por signos misteriosamente específicos, parece-nos preconceito difuso e daninho, ultrapassado resíduo da estética romântica.




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