terça-feira, 3 de junho de 2008

O ETHOS NA MÚSICA GREGA




O ETHOS NA MÚSICA GREGA






por
Najat Nasser
Professora do Departamento de Música, Instituto de Artes, UNICAMP.





Na antiga Grécia a música era uma atividade vinculada a todas as manifestações sociais, culturais, e religiosas. Dentre todas as artes, era a mais relevante. Para os gregos a música era tão importante e universal como o próprio idioma. Como forma de expressão, tinha o poder de influenciar e modificar a natureza moral do homem e do estado. Seu grau de importância pode ser comparado aos princípios da ética e da política, como declara Damon: "Não se pode alterar os modos musicais sem alterar ao mesmo tempo as leis fundamentais do Estado"1.

A música constitui um dos principais interesses na organização política do estado grego. Como em outras instâncias, suas regras deveriam ser observadas pelo estado, e por essa razão não caberia deixá-las a critério dos artistas. Por isso, a formação musical era um requisito básico na educação de qualquer cidadão livre, pois caberia a ela direcionar a conduta moral, social e política de cada indivíduo, para cumprir adequadamente seu papel junto ao estado. A música deveria exaltar as boas qualidades no indivíduo e ao mesmo tempo suscitar o significado de ordem, dignidade, capacidade de decisões rápidas, além do equilíbrio, simplicidade e temperança.

As questões relativas aos princípios éticos e estéticos da música são tratadas por Platão, principalmente na República e nas Leis. Na concepção de Platão, a música expressa as relações intrínsecas existentes entre as progressões musicais e os movimentos da alma. A função da música, acima de tudo, era buscar o equilíbrio da alma, assim como produzir um conjunto harmônico de conhecimentos. Para os gregos, os conceitos de concordância e proporção constituíam a base de todas as manifestações, éticas, estéticas e intelectuais, e a música por si só agregava todos esses princípios. As formas de expressão rítmicas, melódicas e poéticas, eram determinadas por normas que pudessem conduzir o indivíduo à essência desses princípios. A educação musical poderia estruturar o indivíduo e o estado, e sua prática representava a condição suficiente para determinar as normas da conduta moral. Neste contexto, a palavra nómos (no/moj) era utilizada pelos gregos no seu sentido duplo: poderia designar melodias tradicionais, e leis morais, sociais e políticas do estado.

Os gregos acreditavam que existia uma correlação entre sons musicais e processos naturais capazes de influenciar a conduta humana. O elo que transforma essa força em música era determinada por pequenos grupos melódicos que serviam como unidades estruturais para compor melodias mais extensas. Esses grupos eram denominados pelos gregos de nómos, plural nómoi, e representavam toda a força dinâmica da música. Esse princípio tem sua origem, e grande significação, na música das culturas orientais, mas é somente na Grécia que atinge seu desenvolvimento máximo O Ethos na música grega com a doutrina do ethos. Na perspectiva musical, a doutrina do ethos expressa a ordenação, diferenciação e o equilíbrio dos componentes rítmicos, melódicos e poéticos. A sincronicidade de todos esses elementos constituía um fator determinante na influência da música sobre o caráter humano. Essa concepção revela o porque a música era considerada como um atributo fundamental no sistema político e educacional do estado. De acordo com a doutrina do ethos, a música tem o poder de agir e modificar categoricamente os estados de espírito nos indivíduos. Pode induzir à ação; fortalecer ou de modo
contrário enfraquecer o equilíbrio mental; ou ainda gerar um estado de inconsciência, onde a força de vontade fica totalmente ausente nos indivíduos.

A definição de Herman Abert, aponta as relações existentes entre o conceito de ethos e seus efeitos:

"A idéia do ethos se fundamenta no postulado de que entre os movimentos da música e os movimentos psíquicos da homem existam relações íntimas que possibilitam à música um influxo determinado sobre o caráter humano. Prova disso é que os gregos atribuíam uma importância especial às inflexões de nossas faculdades volitivas; importava apenas despertar estados de ânimos passivos".2

De acordo com os filósofos, os efeitos da música sobre o comportamento humano podem ocorrer de quatro maneiras distintas: primeiro, pode induzir à ação, ethos praktikón; segundo, pode manifestar a força, o ânimo, ethikón; terceiro, pode provocar a fraqueza no equilíbrio moral, ethos malakón, ou threnôdes, que segundo Platão resulta dos cantos trenódicos baseados nas harmonias plangentes como lídia mista e a lídia tensa3; e quarto, pode induzir temporariamente, à ausência das faculdades volitivas produzindo um estado de inconsciência, ethos enthousiastikón. Esse ethos está associado aos ritos dionisíacos propício para induzir ao êxtase e o delírio4.

A doutrina do ethos constitui o paradigma da República de Platão, reflete o espírito da pólis clássica ideal - a cidade preserva a unidade moral, social e política - no seu sentido mais profundo e preciso. Na República, a música seqüencia a construção moral do caráter e da conduta, no homem e no estado. As qualidades místico-religiosa e ritualística da música são aqui substituídas e centradas nas qualidades morais. Em consonância com esses princípios, as composições musicais deveriam ser melodicamente e ritmicamente regidas por um conjunto de regras e normas preestabelecidas. Essa concepção pode representar uma atitude arbitrária contra a liberdade da criação artística, mas isso é mera aparência, pois o objetivo maior era que se mantivessem vivas as tradições do passado. Na República, o espírito dos deuses e heróis homéricos são exaltados, com a finalidade de impedir a manifestação de novas tendências musicais que emergiam com a doutrina hedonista. A liberdade dos grandes heróis, a liberdade sem limites que transcende as fronteiras do tempo e do espaço, devem ser preservadas, e não podem ser supridas por liberdades circunstanciais e transitórias.

Na República, Platão considera a música e a ginástica como os elementos essenciais na educação. A ginástica não vem antes da música, mas deve precedê-la e a música é quem deve predominar, porque é o aperfeiçoamento da alma que enobrece e aperfeiçoa o corpo.

"Também aqui é necessário que comece desde a infância, que seja feita com grande cuidado e se prolongue durante a vida inteira (...). Não creio que o corpo bem constituído possa melhorar a alma com suas excelências corporais, mas, pelo contrário, é a alma boa que, mercê de suas virtudes, aperfeiçoa o corpo na medida em que isso for possível (...) a alma convenientemente educada se encarregará do corpo".5

A prática isolada da ginástica nutre nos indivíduos a brutalidade e dureza, e a da música induz à mansidão e letargia do espírito. A verdadeira harmonia da alma, na mais justa proporção, resulta entre a combinação equilibrada da música e da ginástica. Para manter a tradição, Platão sugere que a boa música seja uma arte cultivada e aperfeiçoada por todos os cidadãos. A educação musical era uma prerrogativa da cultura grega.

Na Arcádia, o estado regulamentava que todos os indivíduos, até a idade de trinta anos, deveriam ser submetidos à educação musical. Em Atenas, Esparta e Tebas, todos os cidadãos livres deveriam aprender a tocar aulos e participar das atividades corais. A prática do canto coral era prescrita em ordem cronológica, onde os eventos históricos e os grandes feitos eram contados através do canto. Iniciava-se pelos hinos mais antigos de louvor e glorificação aos deuses e heróis, e concluía-se com as novas tendências musicais praticadas na época. Na República, o conjunto de músicas passa por uma seleção, e permanecem aquelas que possam melhor contribuir para a formação da conduta moral do cidadão.

Na cultura grega, os dois instrumentos mais utilizados e apreciados eram a cítara e o aulos. A cítara, um instrumento de cordas, possuía um som suave, enquanto que o aulos, um instrumento de sopro com palheta, possuía um som estridente e penetrante. Segundo Plutarco, Apolo não era somente o inventor da música, mas também o inventor das músicas para cítara e aulos6. Os gregos acreditavam que esses instrumentos, em função de suas características timbrísticas, fossem dotados de qualidades éticas. Da mesma maneira, cada um dos modos possuía seu próprio ethos; alguns exaltavam as qualidades nobres, enquanto que outros induziam à violência e degradação moral. Supõe-se, que essas qualidades podem estar relacionadas à sua procedência uma vez que a eles era atribuído o mesmo nome das tribos nacionais. É possível que as diferentes qualidades éticas refletissem a índole e o caráter de cada uma.

A doutrina do ethos, na Grécia, foi desenvolvida a partir de pequenos grupos ou fórmulas melódicas denominadas de nómos. Essas fórmulas existem, tradicionalmente, em quase todas as músicas orientais, mas com diferentes denominações. Na música grega, os núcleos nômicos eram utilizados como unidades básicas nas formações melódicas mais extensas. Na antigüidade, essas fórmulas constituíam o princípio dinâmico de toda música. Os nomoi eram naturalmente dotados de uma natureza expressiva, pelo fato de ocorrerem em uma determinada região da voz. No início, eram essencialmente vocais, e mais tarde passaram a ser utilizados nas composições instrumentais, como a cítara, lira e aulos. Musicalmente, essas fórmulas melódicas geravam padrões dentro das melodias, e é por isso que a palavra nomos significa lei. Neste contexto, as fórmulas nômicas constituíam as melodias e ao mesmo tempo revelavam seu valor expressivo. A elaboração de todos esses conceitos veio somente mais tarde com a doutrina do ethos, onde a força expressiva das melodias eram implicitamente veiculadas.



1 República, 424. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
2 SALAZAR, A. La Música en la Cultura Grega. México, El Colégio de México, 1954, pp. 325-6.
3 República, 398.
4 SALAZAR, Op.cit., p. 326.
5 República, 410.

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