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Introdução: a música tríplice
Falar da teoria da harmonia em Platão pressupõe redimensionar ampla e profundamente o conceito de música. De fato, pressupõe extrapolar o orbe restrito à elaboração poético-sonora da prática da arte musical, a música prática — a qual, por articular harmonias audíveis, está vinculada ao âmbito da denominada, pela musicologia tradicional, música orgânica ou instrumental — , a fim de inseri-la no sistema triádico no qual figura ao lado da música mundana e da humana [1]. Tal sistema, criado pelos antigos e compilado por Boécio (Godwim, 1990, p. 86-8), manteve-se intacto, salvo justificadas e pequenas adaptações de autores e épocas, juntamente com o quadro total da terminologia da ciência da harmonia, até o séc. XVII. Declaramos necessário este redimensionamento porque é, de certa forma, muito recente, na história ocidental, a restrição do referido conceito ao que se passou a entender, na modernidade, como exclusivamente pertinente à arte musical, exatamente a mencionada acima como instrumental. Uma vez que tal restrição está, já por alguns poucos mas significativos séculos, marcadamente enraizada na consensual mentalidade geral, hoje, mesmo em certos meios mais intelectualizados, conceitos como musicalidade e harmonia têm uma amplitude que, desde o séc. XVIII, no máximo se estendem à arte em geral e, por este caminho, à estética (Palisca, 1961, p. 91-137).
Desta forma, esta nossa conclamação a um redimensionamento do conceito de música não passa de uma recordação de um antigo elo de arte e a ciência da harmonia, uma ciência, mais que cosmológica, verdadeiramente cosmogônica, uma vez que, vale repetir, por mais de dois milênios, ou seja, dos protocosmólogos ocidentais, os pitagóricos pré-platônicos, até Kepler, talvez o último representante da cosmologia tradicional, a música instrumental integrava o referido sistema triádico ao lado da música cósmica ou mundana (macrocósmica) e da música humana (microcósmica) [2].
O reestabelecimento mnemônico de uma concepção tripla de música é, ao mesmo tempo, o do vínculo hierárquico primordial que subsidiava o trânsito bidirecional entre teoria e prática, entre contemplação e técnica, entre alétheia e poíesis, entre verdade e produção de verdades ou verossimilhanças, dentre outras analogias possíveis.
Tal tripartição da música cremos que seja um dos fundamentos da construção e daí da leitura da República. Neste diálogo, a justiça, conceito mais que perfeitamente análogo à harmonia, começa por ser apresentada de uma forma exterior, perdida na problemática ideologização da doxa, pendularmente oscilando entre a reprodução mecânica de ditos poéticos até o próprio questionamento de seu valor intrínseco, chegando até mesmo a ser tiranicamente reduzida a uma tecnicalidade jurídica. Depois, no gradual transcorrer do diálogo, é lentamente transmutada em um projeto a ser realizado dentro do homem, um projeto auto-instanciado no seio da evolução dramática das três personagens principais — Sócrates, Gláucon e Adimanto — as quais, tanto sob o ponto de vista dos respectivos conteúdos quanto da forma estilística de suas interlocuções, representam tipologicamente as três camadas hierarquizadas da alma humana. Paralelamente à ascenção e declínio do Estado (Brumbaugh, 1989, pp 21, 23, 43), movimento duplo organicamente integrante da dialética platônica, a referida evolução caminha da discordância das posições das personagens para uma harmônica conversa de amigos.
Um dos marcos iniciais deste processo dá-se através da questão da temperança — virtude que está para a ética assim como o temperamento para a teoria da afinação —, conceito aplicado por Platão exatamente na discussão sobre a música no livro III. O objetivo último de tal discussão, por um lado, é, no seio da absolutamente inevitável derrocada da cidade ideal — matematicamente prevista por Sócrates (República 546 a-d) —, atenuar, dentro do possível, a inexorável incomensurabilidade das potências internas ao som, ao homem e ao cosmos, incomensurabilidade que constitui a primeira e derradeira razão de ser de todo inescapável “des-astre”. Por outro, é uma forma especial de “militância cósmica” que vê, na irredutível subjacente imperfeição dos interstícios do universo manifesto, exatamente aquele campo flexível passível de ser temperado, de ser aperfeiçoado e de, axiológica e teleologicamente, apontar para uma última perfeição, sempre prometida enquanto realizada e realizada enquanto almejada. Com a questão da justiça percorrendo, por analogias, as suas homologias no som, homem, sociedade e cosmos, Platão peregrina a descrição dialética de seus fundamentos harmônicos e desarmônicos, suas consonâncias e irredutíveis dissonâncias, para culminar, no livro X, com a exposição contemplativa da justiça cósmica através de um conjunto de escalas de cores, planetas, velocidades orbitais e tons retratados pela harmonia celeste cantada pelas Sereias, harmonia esta em perpétuo aperfeiçoamento e temperamento pela reafinação constante efetivada pelas Parcas.
Embora este roteiro, fundamentado na principialidade das estruturas tripartites, seja um dos primeiros possíveis para a leitura da República, obra fundamental para o estudo da teoria da harmonia em Platão, este artigo terá a oportunidade de percorrer, talvez não mais do que apontar, alguns outros, apoiados em outras formas de divisões perfeitamente entendíveis como decorrentes da primeira. Tais oportunidades despontarão dos comentários advindos da análise harmônica daquele momento platônico que elegemos como a base da estruturação corpórea deste artigo, a saber, o início do passo da criação da alma do mundo do Timeu, talvez mais pungente de toda a ciência tradicional da harmonia, diálogo este cuja fortuna crítica e filosófica se deve à tradução comentada de Calcídio, graças à qual a Idade Média latina herdou a teoria da harmonia da antiguidade ocidental. Dessa forma, em sua organização geral, este artigo será pontuado pelo encadeamento intermitente das citações sucessivas do início deste passo; tal intermitência, por sua vez, será determinada pelo contraponto de comentários e apontamentos sobre o trecho em questão. Como o Timeu é o mais pitagórico dos diálogos platônicos, torna-se difícil, por vezes, distinguir, especialmente no âmbito da teoria harmônica, as perspectivas dos pitagóricos e dos platônicos, e Aristóteles serviu-nos para apontar a identidade e as diferenças entre elas. Por ser o Timeu, como dissemos, o diálogo mais comentado de Platão, dentro de um verdadeiro oceano de comentadores, escolhemos os comentários de Proclo como o núcleo temático dos contrapontos elucidativos das citações do referido passo, escolha justificável tanto qualitativamente, dada sua inquestionável autoridade, quanto por se tratar do mais extenso comentário herdado pela tradição ocidental.
Encerramos esta introdução com uma importante ressalva para o leitor não acostumado com os ditames da teoria da harmonia. Foi, por vezes, impossível não antecipar breves explanações sobre conceitos que, dada a rítmica das citações do passo do Timeu, só mais tarde viriam a ser um pouco mais definidos e explicados, sempre dentro das limitações inerentes a um artigo. Esperamos que, frente a este justificável obstáculo, a leitura não seja interrompida e, pela mobilização de sua paciência, que o leitor, afortunadamente para nós, nela prossiga, permitindo assim o despontar das indispensáveis explicações.
*notas da introdução:
[1] Uma vez que a concepção de música enquanto elaboração artesanal nasceu, como não poderia deixar de ser, junto com o despontar dos primórdios da escritura musical — esboçada embrionariamente a partir do séc. XI d.C. para somente atingir um grau de maturação no final do período medieval —, fá-se necessária a ressalva de que a categoria da música instrumental, em termos da tradição platônica, se restringia apenas à utilização do instrumento denominado monocórdio, o qual, através das divisões regulares de uma corda sonora, torna audível, dentro do campo de suas limitações, parte da abordagem dianoética inaudível das harmonias numéricas nos termos pura e infalivelmente matemáticos da ciência musical.
[2] A tripartição que estamos apontando na música é um procedimento generalizável a todas outras ciências. Assim, também na aritmética, três conceitos fundamentais de número fundamentam sua tradicional tripartição. Ghyka, citando Nicômaco, começa por dois deles: o número divino, ou número-idéia, e o número científico. O primeiro é tema de uma aritmologia de tendências metafísicas, a parte mais elevada da aritmética, dirigida exclusivamente aos filósofos. O segundo, tendo o anterior como modelo ideal, é a ocupação da aritmética propriamente dita, uma parte intermédia ainda dirigida aos então iniciados, obedecendo um método silogístico rigoroso de tipo euclidiano. Já a parte inferior e funcional-operativa da aritmética, a logística ou cálculo, é uma técnica para comerciantes que opera com os números concretos (Ghyka, 1978, p. 22).
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