quinta-feira, 21 de agosto de 2008

História da Música Ocidental - Capítulo 1, parte 1.1. A Herança Grega



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Índice

1 A situação da música no fim do mundo antigo

1.1 A herança grega

1.1.1 A música na vida e no pensamento da Grécia Antiga
1.1.2 Música e filosofia na Grécia
1.1.3 A doutrina do Ethos

1.2 O sistema musical grego

1.2.1 Exemplo 1.1 – Tetracordes
1.2.2 Exemplo 1.2 – Tetracordes conjuntos e disjuntos
1.2.3 Exemplo 1.3 – O sistema perfeito completo
1.2.4 Exemplo 1.4 – Sistema de espécies de oitavas, segundo Cleónides, e sistema de tonoi, segundo Ptolomeu
1.2.5 Exemplo 1.5 – Epitáfio de Seikilos
1.2.6 Exemplo 1.6 – Stasimon do Orestes (fragmento)
1.2.7 A música na antiga Roma

1.3 Os primeiros séculos da igreja cristã

1.3.1 A herança judaica
1.3.2 Bizâncio
1.3.3 Liturgias ocidentais
1.3.4 A preeminência de Roma
1.3.5 Os padres da igreja
1.3.6 Boécio

1.4 Bibliografia

1.4.1 Fontes
1.4.2 Leitura Aprofundada

1.4.2.1 Música grega
1.4.2.2 Música hebraica
1.4.2.3 Música bizantina
1.4.2.4 Liturgia ocidental



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A situação da música no fim do mundo antigo




Quem vivesse numa província do Império Romano no século V da era cristã poderia ver estradas por onde as pessoas outrora haviam viajado e agora já não viajavam, templos e arenas construídos para multidões agora votados ao abandono e a ruina, e a vida, geração após geração, um pouco por toda a parte, tornando-se cada vez mais pobre, mais insegura e mais difícil. Roma, no tempo da sua grandeza, fizera reinar a paz em quase toda a Europa ocidental, bem como em muitas zonas da África e da Ásia, mas, entretanto, enfraquecera e já não tinha capacidade para se defender. Os bárbaros iam chegando do Norte e do Leste, e a civilização comum a toda a Europa desagregava-se em fragmentos que só muitos séculos mais tarde começariam gradualmente a fundir-se de novo, dando origem as nações modernas.

O declínio e a queda de Roma marcaram tão profundamente a história europeia que ainda hoje temos dificuldade em nos apercebermos de que, paralelamente ao processo de destruição, se iniciava então, paulatinamente, um processo inverso de criação, centrado na igreja cristã. Até ao século X foi esta instituição o principal — e muitas vezes o único — laço unificador e canal de cultura da Europa. As primeiras comunidades cristãs, não obstante terem sofrido durante trezentos anos perseguições mais ou menos esporádicas, cresceram regularmente e disseminaram-se por todas as regiões do império. O imperador Constantino adoptou uma política de tolerância após a sua conversão, em 312, e fez do cristianismo a religião da família imperial. Em 395 a unidade política do mundo antigo foi formalmente desfeita, com a divisão em Império do Oriente e Império do Ocidente, tendo por capitais Bizâncio e Roma. Quando, após um século terrível de guerras e invasões, o último imperador do Ocidente foi, finalmente, deposto do seu trono, em 476, os alicerces do poder papal estavam já tão firmemente estabelecidos que a Igreja se encontrava em condições de assumir a missão civilizadora e unificadora de Roma.



1.1 A herança grega

A história da música ocidental, em sentido estrito, começa com a música da igreja cristã. Todavia, ao longo de toda a Idade Média, e mesmo nos dias de hoje, artistas e intelectuais têm ido continuamente a Grécia e a Roma a procura de ensinamentos, correcções e inspiração nos mais diversos campos de actividades. Isto também é válido para a música, embora com algumas diferenças importantes em relação as outras artes. A literatura romana, por exemplo, nunca deixou de exercer a sua influência ao longo da Idade Média. Virgílio, Ovídio, Horácio e Cícero continuaram sempre a ser estudados e lidos. Esta influência tornou-se bem mais importante nos séculos XIV e XV, a medida que foram sendo conhecidas mais obras romanas; ao mesmo tempo ia sendo gradualmente recuperado aquilo que sobrevivera da literatura grega. Contudo, no domínio da literatura, bem como em vários outros campos (nomeadamente no da escultura), os artistas medievais e renascentistas tinham a vantagem de poderem estudar e, se assim o desejassem, imitar os modelos da antiguidade. Tinham diante dos olhos os poemas ou as estátuas autênticos. Já com a música não acontecia o mesmo. Os músicos da Idade Média não conheciam um exemplo sequer da música grega ou romana, embora alguns hinos tenham vindo a ser identificados no Renascimento. Actualmente estamos numa situação bastante melhor, pois, entretanto, foram reconstituídas cerca de quarenta peças ou fragmentos de peças musicais gregas, a maioria das quais de épocas relativamente tardias, mas cobrindo um período de cerca de sete séculos. Embora não haja vestígios autênticos da música da antiga Roma, sabemos, por relatos verbais, baixos-relevos, mosaicos, frescos e esculturas, que a música desempenhava um papel importante na vida militar, no teatro, na religião e nos rituais de Roma.

Houve uma razão importante para o desaparecimento das tradições da prática musical romana no início da Idade Média: a maior parte desta música estava associada a práticas sociais que a igreja primitiva via com horror ou a rituais pagãos que julgava deverem ser eliminados. Por conseguinte, foram feitos todos os esforços não apenas para afastar da Igreja essa música, que traria tais abominações ao espírito dos fiéis, como, se possível, para apagar por completo a memória dela.

Houve, no entanto, alguns elementos da prática musical antiga que sobreviveram durante a Idade Média, que mais não fosse porque seria quase impossível aboli-los sem abolir a própria música; além disso, as teorias musicais estiveram na base das teorias medievais e foram integradas na maior parte dos sistemas filosóficos. Por isso, se queremos compreender a música medieval, temos de saber alguma coisa acerca da música dos povos da antiguidade, em particular da teoria e da prática musicais dos Gregos.



1.1.1 A MÚSICA NA VIDA E NO PENSAMENTO DA GRÉCIA ANTIGA


A mitologia grega atribuía a música origem divina e designava como seus inventores e primeiros intérpretes deuses e semideuses, como Apolo, Anfião e Orfeu. Neste obscuro mundo pré-histórico a música tinha poderes mágicos: as pessoas pensavam que era capaz de curar doenças, purificar o corpo e o espírito e operar milagres no reino da Natureza. Também no Antigo Testamento se atribuíam a música idênticos poderes: basta lembrar apenas o episódio em que David cura a loucura de Saul tocando harpa (1 Samuel, 16, 14-23) ou o soar das trombetas e a vozearia que derrubaram as muralhas de Jericó (Josué, 6, 12-20). Na época homérica os bardos cantavam poemas heróicos durante os banquetes (Odisseia, 8, 62-82).

Desde os tempos mais remotos a música foi um elemento indissociável das cerimónias religiosas. No culto de Apolo era a lira o instrumento característico, enquanto no de Dioniso era o aulo. Ambos os instrumentos foram, provavelmente, trazidos para a Grécia da Ásia Menor. A lira e a sua variante de maiores dimensões, a cítara, eram instrumentos de cinco e sete cordas (número que mais tarde chegou a elevar-se até onze); ambas eram tocadas, quer a solo, quer acompanhando o canto ou a recitação de poemas épicos. O aulo, um instrumento de palheta simples ou dupla (não era uma flauta), muitas vezes com dois tubos, tinha um timbre estridente, penetrante, associava-se ao canto de um certo tipo de poema (o ditirambo) no culto de Dioniso, culto que se crê estar na origem do teatro grego. Consequentemente, nas grandes tragédias da época clássica — obras de Ésquilo, Sófocles, Eurípides — os coros e outras partes musicais eram acompanhados pelo som do aulo ou alternavam com ele.

Apolo segura uma cítara de sete cordas.
Mais elaborada e mais robusta do que a
lira, a cítara era um instrumento usado
pelos músicos profissionais. Apolo tem
na mão direita um plectro, que servia
para tocar as cordas; os dedos da mão
direita parecem estar a amortecer as
cordas do instrumento.
Ânfora grega, meados dos século V a.C.
(
Metropolitan Museum of Art,
doação do Sr. e da Sra. Leon Pomerance, 1953)

Pelo menos desde o século VI a. C. tanto a lira como o aulo eram tocados como instrumentos independentes, a solo. Conhece-se um relato de um festival ou concurso de música realizado por ocasião dos Jogos Píticos em 586 a. C. em que Sacadas tocou uma composição para aulo, ilustrando o nomo pítico as diversas fases do combate entre Apolo e o dragão Píton. Os concursos de tocadores de cítara e aulo, bem como os festivais de música instrumental e vocal, tornaram-se cada vez mais populares a partir do século V a. C. À medida que a música se tornava mais independente, multiplicava-se o número de virtuosos; ao mesmo tempo, a música em si tornava-se cada vez mais complexa em todos os aspectos. Alarmado com a proliferação da arte musical, Aristóteles, no século IV, manifestava-se contra o excesso de treino profissional na educação musical do homem comum:

Alcançar-se-á a medida exacta se os estudantes de música se abstiverem das artes que são praticadas nos concursos para profissionais e não procurarem dominar esses fantásticos prodígios de execução que estão agora em voga em tais concursos e que daí passaram para o ensino. Deixem que os jovens pratiquem a música conforme prescrevemos, apenas até serem capazes de se deleitarem com melodias e ritmos nobres e não meramente nessa parte comum da música que até a qualquer escravo, ou criança, ou mesmo a alguns animais, consegue dar prazer[1].

Algum tempo após a época clássica (entre 450 e 325 a. C., aproximadamente) deu-se uma reacção contra o excesso de complexidade técnica, e no início da era cristã a teoria musical grega, e provavelmente também a prática, estava muito simplificada. A maior parte dos exemplos de música grega que chegaram até nós provêm de períodos relativamente tardios. Os mais importantes de entre eles são um fragmento de um coro do Orestes de Eurípides (vv. 338-344), de um papiro datado de cerca do ano 200 a. C., sendo a música, possivelmente, do próprio Eurípides (NAWM 1)[2], um fragmento da Ifigénia em Áulide de Eurípides (vv. 783-793), dois hinos délficos a Apolo, praticamente completos, datando o segundo de 128-127 a. C., um escólio, ou canção de bebida, que serve de epitáfio a uma sepultura, também do século I, ou pouco posterior (NAWM 2), e Hino a Némesis, Hino ao Sol e Hino a Musa Calíope de Mesomedes de Creta, do século II.


Uma mulher toca aulo duplo numa
cena de bebida. De um modo geral,
instrumento de palheta simples, mas
por vezes de palheta dupla, o aulo
era normalmente tocado aos pares;
aqui a tocadora parece estar a emitir
notas idênticas com ambos os tubos.
Taça de vinho de figuras vermelhas
atribuída ao pintor de vasos atiço
Oltos, 525-500 a.C.
(Madrid,
Museu Arqueológico Nacional)

A música grega assemelhava-se a da igreja primitiva em muitos aspectos fundamentais. Era, em primeiro lugar, monofónica, ou seja, uma melodia sem harmonia ou contraponto. Muitas vezes, porém, vários instrumentos embelezavam a melodia em simultâneo com a sua interpretação por um conjunto de cantores, assim criando uma heterofonia. Mas nem a heterofonia nem o inevitável canto em oitavas, quando homens e rapazes cantam em conjunto, constituem uma verdadeira polifonia. A música grega, além disso, era quase inteiramente improvisada. Mais ainda: na sua forma mais perfeita (teleion melos), estava sempre associada a palavra, a dança ou a ambas; a sua melodia e o seu ritmo ligavam-se intimamente a melodia e ao ritmo da poesia, e a música dos cultos religiosos, do teatro e dos grandes concursos públicos era interpretada por cantores que acompanhavam a melodia com movimentos de dança predeterminados.


1.1.2 MÚSICA E FILOSOFIA NA GRÉCIA

Dizer que a música da igreja primitiva tinha em comum com a grega o facto de ser monofónica, improvisada e inseparável de um texto não é postular uma continuidade histórica entre ambas. Foi a teoria, e não a prática, dos Gregos que afectou a música da Europa ocidental na Idade Média. Temos muito mais informação acerca das teorias musicais gregas do que acerca da música em si. Essas teorias eram de dois tipos: (1) doutrinas sobre a natureza da música, o seu lugar no cosmos, os seus efeitos e a forma conveniente de a usar na sociedade humana, e (2) descrições sistemáticas dos modelos e materiais da composição musical. Tanto na filosofia como na ciência da música os Gregos tiveram intuições e formularam princípios que em muitos casos ainda hoje não estão ultrapassados. É evidente que o pensamento grego no domínio da música não permaneceu estático de Pitágoras (cerca de 500 a. C.), o seu célebre fundador, a Aristides Quintiliano (século IV d. C.), último autor grego de relevo neste campo; o resumo que se segue, embora necessariamente simplificado, insiste nos aspectos mais característicos e mais importantes para a história ulterior da música ocidental.

A palavra música tinha para os Gregos um sentido mais lato do que aquele que hoje lhe damos. Era uma forma adjectivada de musa — na mitologia clássica, qualquer das nove deusas irmãs que presidiam a determinadas artes e ciências. A relação verbal sugere que entre os Gregos a música era concebida como algo comum a todas as actividades que diziam respeito a busca da beleza e da verdade. Nos ensinamentos de Pitágoras e dos seus seguidores a música e a aritmética não eram disciplinas separadas; os números eram considerados a chave de todo o universo espiritual e físico; assim, o sistema dos sons e ritmos musicais, sendo regido pelo número, exemplificava a harmonia do cosmos e correspondia a essa harmonia. Foi Platão que, no Timeu (o mais conhecido de todos os seus diálogos na Idade Média) e na República, expôs esta doutrina de forma mais completa e sistemática. As ideias de Platão acerca da natureza e funções da música, tal como vieram mais tarde a ser interpretadas pelo autores medievais, exerceram uma profunda influência nas especulações destes últimos sobre a música e o seu papel na educação.

Para alguns pensadores gregos a música estava também intimamente ligada a astronomia. Com efeito, Cláudio Ptolemeu (século II d. C.), o mais sistemático dos teóricos antigos da música, foi também o mais importante astrónomo da antiguidade. Pensava-se que as leis matemáticas estavam na base tanto do sistema dos intervalos musicais como do sistema dos corpos celestes e acreditava-se que certos modos e até certas notas correspondiam a um ou outro planeta. Tais conotações e extensões misteriosas da música eram comuns a todos os povos orientais. Platão[3] deu a essa ideia uma forma poética no belo mito da "música das esferas", a música produzida pela revolução dos planetas, mas que os homens não conseguiam ouvir; tal concepção foi evocada por diversos autores que escreveram sobre música ao longo de toda a Idade Média e mais tarde, entre outros, por Shakespeare e Milton.

A íntima união entre música e poesia dá também a medida da amplitude do conceito de música entre os Gregos. Para os Gregos os dois termos eram praticamente sinónimos. Quando hoje falamos da "música da poesia", estamos a empregar uma figura de retórica, mas para os Gregos essa música era uma verdadeira melodia, cujos intervalos e ritmos podiam ser medidos de forma exacta. Poesia "lírica" significava poesia cantada ao som da lira; o termo tragédia inclui o substantivo ode, "a arte do canto". Muitas outras palavras gregas que designavam os diferentes géneros de poesia, como ode e hino, eram termos musicais. As formas desprovidas de música eram também desprovidas de nome. Na Poética, Aristóteles, depois de apresentar a melodia, o ritmo e a linguagem como os elementos da poesia, afirma o seguinte: "Há outra arte que imita recorrendo apenas a linguagem, quer em prosa, quer em verso [...], mas por enquanto tal arte não tem nome[4]."

A ideia grega de que a música se ligava indissociavelmente a palavra falada ressurgiu, sob diversas formas, ao longo de toda a história da música: com a invenção do recitativo, por volta de 1600, por exemplo, ou com as teorias de Wagner acerca do teatro musical, no século XIX.


1.1.3 A DOUTRINA DO ETOS

A doutrina do etos, das qualidades e efeitos morais da música, integrava-se na concepção pitagórica da música como miscrocosmos, um sistema de tons e ritmos regido pelas mesmas leis matemáticas que operam no conjunto da criação visível e invisível. A música, nesta concepção, não era apenas uma imagem passiva do sistema ordenado do universo; era também uma força capaz de afectar o universo — daí a atribuição dos milagres aos músicos lendários da mitologia. Numa fase posterior, mais científica, passaram a sublinhar-se os efeitos da música sobre a vontade e, consequentemente, sobre o carácter e a conduta dos seres humanos. O modo como a música agia sobre a vontade foi explicado por Aristóteles[5] através da doutrina da imitação. A música, diz ele, imita directamente (isto é, representa) as paixões ou estados da alma — brandura, ira, coragem, temperança, bem como os seus opostos e outras qualidades; daí que, quando ouvimos um trecho musical que imita uma determinada paixão, fiquemos imbuídos dessa mesma paixão; e, se durante um lapso de tempo suficientemente longo ouvirmos o tipo de música que desperta paixões ignóbeis, todo o nosso carácter tomará uma forma ignóbil. Em resumo, se ouvirmos música inadequada, tornar-nos-emos pessoas más; em contrapartida, se ouvirmos a música adequada, tenderemos a tornar-nos pessoas boas[6].

Platão e Aristóteles estavam de acordo em que era possível produzir pessoas "boas" mediante um sistema público de educação cujos dois elementos fundamentais eram a ginástica e a música, visando a primeira a disciplina do corpo e a segunda a do espírito. Na República, escrita por volta de 380 a. C., Platão insiste na necessidade de equilíbrio entre estes dois elementos na educação: o excesso de música tornará o homem efeminado ou neurótico; o excesso de ginástica torná-lo-á incivilizado, violento e ignorante. "Àquele que combina a música com a ginástica na proporção certa e que melhor as afeiçoa a sua alma bem poderá chamar-se verdadeiro músico[7]." Mas só determinados tipos de música são aconselháveis. As melodias que exprimem brandura e indolência devem ser evitadas na educação dos indivíduos que forem preparados para governarem o estado ideal; só os modos dórico e frígio serão admitidos, pois promovem, respectivamente, as virtudes da coragem e da temperança. A multiplicidade das notas, as escalas complexas, a combinação de formas e ritmos incongruentes, os conjuntos de instrumentos diferentes entre si, "os instrumentos de muitas cordas e afinação bizarra", até mesmo os fabricantes e tocadores de aulo, deverão ser banidos do estado[8]. Os fundamentos da música, uma vez estabelecidos, não deverão ser alterados, pois o desregramento na arte e na educação conduz inevitavelmente a libertinagem nos costumes e a anarquia na sociedade[9]. O ditado "deixai-me fazer as canções de uma nação, que pouco me importa quem faz as suas leis" era uma máxima política, mas também um trocadilho, pois a palavra nomos, que significa "costume" ou "lei", designava também o esquema melódico de uma canção lírica ou de um solo instrumental[10]. Aristóteles, na Política (cerca de 330 a. C.), mostrou-se menos restritivo do que Platão quanto a ritmos e modos particulares. Concebia que a música pudesse ser usada como fonte de divertimento e prazer intelectual, e não apenas na educação[11].

É possível que, ao limitarem os tipos de música autorizados no estado ideal, Platão e Aritóteles estivessem deliberadamente a deplorar certas tendências da vida musical do seu tempo: ritmos associados a ritos orgiásticos, música instrumental independente, popularidade dos virtuosos profissionais. A menos que encaremos estes filósofos como homens tão desligados do mundo real da arte que as suas opiniões no domínio da música não têm a menor relevância, devemos relembrar os seguintes factos: primeiro, na Grécia antiga a palavra música tinha um sentido muito mais lato do que aquele que lhe damos hoje; segundo, não sabemos qual era a sonoridade dessa música, e não é impossível que tivesse realmente certos poderes sobre o espírito que não possamos idealizar; terceiro, houve muitos momentos históricos em que o estado ou outras autoridades proibiram determinados tipos de música, partindo do princípio de que se tratava de uma questão importante para o bem-estar público. Havia leis sobre a música nas primeiras constituições de Atenas e de Esparta. Os escritos dos Padres da Igreja contêm muitas censuras a determinados tipos de música. E mesmo no século XX o assunto está longe de ter sido encerrado. As ditaduras, tanto fascistas como comunistas, procuraram controlar a actividade musical dos respectivos povos; as igrejas costumam estipular quais as músicas que podem ou não ser tocadas nos serviços religiosos; os educadores continuam a preocupar-se com o tipo de música, bem como com o tipo de imagens e textos, a que se vêem expostos os jovens de hoje.

A doutrina grega do etos, por conseguinte, baseava-se na convicção de que a música afecta o carácter e de que os diferentes tipos de música o afectam de forma diferente. Nestas distinções efectuadas entre os muitos tipos de música podemos detectar uma divisão genérica em duas categorias: a música que tinha como efeitos a calma e a elevação espiritual, por um lado, e, por outro, a música que tendia a suscitar a excitação e o entusiasmo. A primeira categoria era associada ao culto de Apolo, sendo o seu instrumento a lira e as formas poéticas correlativas a ode e a epopeia. A segunda categoria, associada ao culto de Dioniso, utilizava o aulo e tinha como formas poéticas afins o ditirambo e o teatro.

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Notas:

[1] Aristóteles, Política, 8.6.1341a; cf. também Platão, Leis, 2.669,670A.
[2] O acrônimo NAWM, que será empregado ao longo de toda esta edição, refere-se à Norton Anthology of Western Music, 2ª. Ed., organizada por Claude V. Palisca.
[3] Platão, República, 10.617.
[4] Aristóteles, Poética, 1.1447a-b.
[5] Aristóteles, Política, 8.1340a-b; cf. Platão, Leis, 2.665,70C.
[6] V. também Platão, República, 3.401D-E.
[7] Platão, República, 3.412A.
[8] Platão, República, 3.398C-399E, e também Leis, 7.812C-813A.
[9] Platão, República, 4.424C, e também Leis, 3.700B-E.
[10] Platão, Leis, 7.799E-800B
[11] Aristóteles, Política, 8.133b-1340a.


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