segunda-feira, 23 de junho de 2008

Rizek e a teoria da harmonia em Platão




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Introdução: a música tríplice

Falar da teoria da harmonia em Platão pressupõe redimensionar ampla e profundamente o conceito de música. De fato, pressupõe extrapolar o orbe restrito à elaboração poético-sonora da prática da arte musical, a música prática — a qual, por articular harmonias audíveis, está vinculada ao âmbito da denominada, pela musicologia tradicional, música orgânica ou instrumental — , a fim de inseri-la no sistema triádico no qual figura ao lado da música mundana e da humana [1]. Tal sistema, criado pelos antigos e compilado por Boécio (Godwim, 1990, p. 86-8), manteve-se intacto, salvo justificadas e pequenas adaptações de autores e épocas, juntamente com o quadro total da terminologia da ciência da harmonia, até o séc. XVII. Declaramos necessário este redimensionamento porque é, de certa forma, muito recente, na história ocidental, a restrição do referido conceito ao que se passou a entender, na modernidade, como exclusivamente pertinente à arte musical, exatamente a mencionada acima como instrumental. Uma vez que tal restrição está, já por alguns poucos mas significativos séculos, marcadamente enraizada na consensual mentalidade geral, hoje, mesmo em certos meios mais intelectualizados, conceitos como musicalidade e harmonia têm uma amplitude que, desde o séc. XVIII, no máximo se estendem à arte em geral e, por este caminho, à estética (Palisca, 1961, p. 91-137).

Desta forma, esta nossa conclamação a um redimensionamento do conceito de música não passa de uma recordação de um antigo elo de arte e a ciência da harmonia, uma ciência, mais que cosmológica, verdadeiramente cosmogônica, uma vez que, vale repetir, por mais de dois milênios, ou seja, dos protocosmólogos ocidentais, os pitagóricos pré-platônicos, até Kepler, talvez o último representante da cosmologia tradicional, a música instrumental integrava o referido sistema triádico ao lado da música cósmica ou mundana (macrocósmica) e da música humana (microcósmica) [2].

O reestabelecimento mnemônico de uma concepção tripla de música é, ao mesmo tempo, o do vínculo hierárquico primordial que subsidiava o trânsito bidirecional entre teoria e prática, entre contemplação e técnica, entre alétheia e poíesis, entre verdade e produção de verdades ou verossimilhanças, dentre outras analogias possíveis.

Tal tripartição da música cremos que seja um dos fundamentos da construção e daí da leitura da República. Neste diálogo, a justiça, conceito mais que perfeitamente análogo à harmonia, começa por ser apresentada de uma forma exterior, perdida na problemática ideologização da doxa, pendularmente oscilando entre a reprodução mecânica de ditos poéticos até o próprio questionamento de seu valor intrínseco, chegando até mesmo a ser tiranicamente reduzida a uma tecnicalidade jurídica. Depois, no gradual transcorrer do diálogo, é lentamente transmutada em um projeto a ser realizado dentro do homem, um projeto auto-instanciado no seio da evolução dramática das três personagens principais — Sócrates, Gláucon e Adimanto — as quais, tanto sob o ponto de vista dos respectivos conteúdos quanto da forma estilística de suas interlocuções, representam tipologicamente as três camadas hierarquizadas da alma humana. Paralelamente à ascenção e declínio do Estado (Brumbaugh, 1989, pp 21, 23, 43), movimento duplo organicamente integrante da dialética platônica, a referida evolução caminha da discordância das posições das personagens para uma harmônica conversa de amigos.

Um dos marcos iniciais deste processo dá-se através da questão da temperança — virtude que está para a ética assim como o temperamento para a teoria da afinação —, conceito aplicado por Platão exatamente na discussão sobre a música no livro III. O objetivo último de tal discussão, por um lado, é, no seio da absolutamente inevitável derrocada da cidade ideal — matematicamente prevista por Sócrates (República 546 a-d) —, atenuar, dentro do possível, a inexorável incomensurabilidade das potências internas ao som, ao homem e ao cosmos, incomensurabilidade que constitui a primeira e derradeira razão de ser de todo inescapável “des-astre”. Por outro, é uma forma especial de “militância cósmica” que vê, na irredutível subjacente imperfeição dos interstícios do universo manifesto, exatamente aquele campo flexível passível de ser temperado, de ser aperfeiçoado e de, axiológica e teleologicamente, apontar para uma última perfeição, sempre prometida enquanto realizada e realizada enquanto almejada. Com a questão da justiça percorrendo, por analogias, as suas homologias no som, homem, sociedade e cosmos, Platão peregrina a descrição dialética de seus fundamentos harmônicos e desarmônicos, suas consonâncias e irredutíveis dissonâncias, para culminar, no livro X, com a exposição contemplativa da justiça cósmica através de um conjunto de escalas de cores, planetas, velocidades orbitais e tons retratados pela harmonia celeste cantada pelas Sereias, harmonia esta em perpétuo aperfeiçoamento e temperamento pela reafinação constante efetivada pelas Parcas.

Embora este roteiro, fundamentado na principialidade das estruturas tripartites, seja um dos primeiros possíveis para a leitura da República, obra fundamental para o estudo da teoria da harmonia em Platão, este artigo terá a oportunidade de percorrer, talvez não mais do que apontar, alguns outros, apoiados em outras formas de divisões perfeitamente entendíveis como decorrentes da primeira. Tais oportunidades despontarão dos comentários advindos da análise harmônica daquele momento platônico que elegemos como a base da estruturação corpórea deste artigo, a saber, o início do passo da criação da alma do mundo do Timeu, talvez mais pungente de toda a ciência tradicional da harmonia, diálogo este cuja fortuna crítica e filosófica se deve à tradução comentada de Calcídio, graças à qual a Idade Média latina herdou a teoria da harmonia da antiguidade ocidental. Dessa forma, em sua organização geral, este artigo será pontuado pelo encadeamento intermitente das citações sucessivas do início deste passo; tal intermitência, por sua vez, será determinada pelo contraponto de comentários e apontamentos sobre o trecho em questão. Como o Timeu é o mais pitagórico dos diálogos platônicos, torna-se difícil, por vezes, distinguir, especialmente no âmbito da teoria harmônica, as perspectivas dos pitagóricos e dos platônicos, e Aristóteles serviu-nos para apontar a identidade e as diferenças entre elas. Por ser o Timeu, como dissemos, o diálogo mais comentado de Platão, dentro de um verdadeiro oceano de comentadores, escolhemos os comentários de Proclo como o núcleo temático dos contrapontos elucidativos das citações do referido passo, escolha justificável tanto qualitativamente, dada sua inquestionável autoridade, quanto por se tratar do mais extenso comentário herdado pela tradição ocidental.

Encerramos esta introdução com uma importante ressalva para o leitor não acostumado com os ditames da teoria da harmonia. Foi, por vezes, impossível não antecipar breves explanações sobre conceitos que, dada a rítmica das citações do passo do Timeu, só mais tarde viriam a ser um pouco mais definidos e explicados, sempre dentro das limitações inerentes a um artigo. Esperamos que, frente a este justificável obstáculo, a leitura não seja interrompida e, pela mobilização de sua paciência, que o leitor, afortunadamente para nós, nela prossiga, permitindo assim o despontar das indispensáveis explicações.


*notas da introdução:
[1] Uma vez que a concepção de música enquanto elaboração artesanal nasceu, como não poderia deixar de ser, junto com o despontar dos primórdios da escritura musical — esboçada embrionariamente a partir do séc. XI d.C. para somente atingir um grau de maturação no final do período medieval —, fá-se necessária a ressalva de que a categoria da música instrumental, em termos da tradição platônica, se restringia apenas à utilização do instrumento denominado monocórdio, o qual, através das divisões regulares de uma corda sonora, torna audível, dentro do campo de suas limitações, parte da abordagem dianoética inaudível das harmonias numéricas nos termos pura e infalivelmente matemáticos da ciência musical.

[2] A tripartição que estamos apontando na música é um procedimento generalizável a todas outras ciências. Assim, também na aritmética, três conceitos fundamentais de número fundamentam sua tradicional tripartição. Ghyka, citando Nicômaco, começa por dois deles: o número divino, ou número-idéia, e o número científico. O primeiro é tema de uma aritmologia de tendências metafísicas, a parte mais elevada da aritmética, dirigida exclusivamente aos filósofos. O segundo, tendo o anterior como modelo ideal, é a ocupação da aritmética propriamente dita, uma parte intermédia ainda dirigida aos então iniciados, obedecendo um método silogístico rigoroso de tipo euclidiano. Já a parte inferior e funcional-operativa da aritmética, a logística ou cálculo, é uma técnica para comerciantes que opera com os números concretos (Ghyka, 1978, p. 22).
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domingo, 15 de junho de 2008

Harmonia Mundi - História da Música vol.10


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Harmoni Mundi - História da Música vol.9


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sábado, 14 de junho de 2008

Harmonia mundi - História da Música vol.8


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Platão e as Musas




As Musas: fonte de inspiração para Platão





Expositor: Zylpha Barros Carvalho do Nascimento
Docente do Instituto de Artes da UNESP.



A música em busca da razão



Pode-se afirmar sem riscos de exageros, diz Moutsopoulos, em sua obra La Musique dans l’oeuvre de Platon, que o mito das cigarras resume toda a doutrina platônica sobre a música. Esta observação física e fisiológica do estudo da arte musical e de suas relações com a ciência da arte, estão notadamente presentes no pensamento platônico – e, sobretudo porque a música não é unicamente um dom reservado às Musas, mas muitos homens são particularmente inclinados a servir esta arte.


Diante desta constatação, nos remetemos à definição etmológica do conceito de Musa para Platão, expresso em seu diálogo Crátilo 405 a, b, c: "...Finalmente, pelo que diz respeito à arte musical, devemos supor o seguinte: Igualmente o que ocorre com as palavras akólouzos e ákoitis, significa com freqüência, juntamente ou "junto" (omou). Da mesma maneira entendemos esta rotação simultânea (omou pólesis) por aquilo que se produz nos céus e que significa "revoluções" (poloi), como na harmonia do canto, chama-se consonância; todos estes movimentos, de fato, segundo afirmam os espíritos cultos, versados na música e na astronomia, são regulados por uma única harmonia. Este deus preside a harmonia, determinando simultaneamente todos estes movimentos, tanto entre os deuses quanto entre os humanos. Conseqüentemente, como o companheiro de jornada e a companheira de fato, têm sido chamados por nós akólousos e ákoitis, substituindo omo por a, do mesmo modo, temos chamado Apolo o autor do movimento simultâneo (omopolón)" ... e em seguida, em outro texto do Crátilo, Sócrates diz: "Pelo que as Musas e a música em geral se refere, parece que o nome Musa, tinha sido derivado da palavra desejar (môszai)". Este nome dórico, que significa também buscar, aparentado com o termo épico memaós, encontra em Epicamo, em Teognis e também nos trágicos. A forma dórica Môsa, em lugar de Mousa – Musa ---, foi seguramente o que facilitou Platão em poder estabelecer esta relação etmológica. No Crátilo, d’Apollon e Apolouôn, significam: o deus músico, o deus da medicina e das purificações. 1


Platão sem dúvida, acredita que o poeta esteja embuido de algum modo, das belas verdades inspiradas pela Musa, prova disso, está nas páginas do diálogo Fédro, quando o filósofo é considerado como um ser inspirado ... Vejamos as seguintes passagens : "esta não é senão a reminiscência daquilo que a alma viu enquanto caminhava em companhia da divindade ...." ".....o homem que sabe servir-se de tais recordações, iniciado continuamente nos mistérios perfeitos é o único que chega a ser verdadeiramente perfeito; porém, como se aparta das ocupações dos homens e se consagra ao divino, o vulgo o repreende dizendo que está fora de si – todavia, não se dá conta de que ele está possuido por um deus" (248 e) . Deste modo, o poeta recebe passivamente as belas verdades da parte da Musa, ao que o filósofo, como no mito da República, remete ativamente ao mundo das idéias e exercita a partir daí, a pura dialética.


Em Athenéias 632 c, lemos a passagem que observa que a sabedoria antiga dos Gregos, parece estar em seu conjunto dedicado à música. Possivelmente, tenha sido este o motivo que fez com que os Gregos se considerassem os melhores músicos e os mais sábios; de um lado, da parte de Apolo, entre os deuses e do outro, de Orfeu, entre os semideuses.


Esse texto trata-se da noção de sophia em relação à música2, pois sophia antes de se tornar um termo filosófico, designou a experiência de um métier3, a habilidade, o uso inteligente de um conhecimento, o segredo de uma arte4, a aplicação de uma técnica particular5. Em Platão, esse termo se opõe à toda aptidão natural e designa um conhecimento mais profundo de um assunto6. Significa principalmente a arte de discursar para as multidões e de advogar em um tribunal. Foi no hino a Hermes da coletânia homérica, que a música recebeu pela primeira vez, o nome de sophia e foi nesse momento, que referiu-se também ao solo da cítara como sendo de uma τεχνη (techné)7.


Um exemplo perfeito desse tipo de sophos está presente na figura de Quiron o centauro, educador modelo de heróis exemplares8. Quiron aparece como o lendário mestre de Aquiles, que lhe ensina o manejo das armas e o tocar da lira9. Quiron, músico-curador, mestre de Esculápio, Aquiles, Ulisses e outros heróis, pode personificar a ligação inseparável que a música tem com a arte de curar sob a forma de encantamento. E para ilustrar melhor, lembremo-nos que na Ilíada, Aquiles afasta sua tristeza por meio da música: "cantando e acompanhando-se pelo phorminx"10.


Em Esparta, a qualidade de sábio era também atribuida ao músico, o que explica a admiração e o respeito das jovens pelo mestre Alcman, constante da segunda coletânea das Partenéias11.

Platão é testemunha dessa sabedoria musical em sua dupla expressão e evolução. De um lado, onde ela alcança o conhecimento racional e filosófico, ele integra-a em seu sistema – e do outro, onde ela torna-se apenas virtuosismo ou empirismo, ele pelo contrário, critica e condena. Nesse sentido, explica-se muito bem, o porquê de sua atitude frente aos músicos de seu tempo e sobretudo, de sua tarefa de elaborar uma nova paidéia musical.


No Górgias a música manifesta-se como um savoir-faire. Sócrates discute sem nenhuma dintinção o conteúdo da retórica no contexto das outras artes e métiers, e, para conferir, vejamos o que ele diz : "O tecer, relaciona-se com a fabricação dos tecidos ... a música, com a criação das melodias ... da mesma maneira, a medicina tem por objeto, os discursos relativos às doenças"12.
Esse momento é extremamente significativo, pois Platão está diante da arte musical e de seu estatuto particular. A música enfim, justifica sua condição social e artística definindo-se como uma área do saber, uma τεχνη (techné), todavia, não necessariamente uma ciência13.


Na época de Platão, a música atravessava uma crise, sobretudo porque o desenvolvimento da técnica instrumental havia chegado a extremos, os músicos-enovadores tinham uma dupla tendência: a policordia e a polifonia14. Plutarco em relação a esse problema, é muito explícito, quando diz em uma passagem de sua obra De Musica que : "... Melanipido, famoso músico poeta lírico da Antiguidade, foi um dos primeiros artistas a romper com a música tradicional – o que foi seguido por Filoxeno e Timótheo – e, enfatiza ainda, que Terpandro, famoso músico do mesmo péríodo, tocava a lira somente com sete notas e que foi exatamente depois dele, que os intervalos musicais foram fraccionados, obtendo-se por conseqüência, os sons suplementares. A aulética mesmo sóbria, pôs-se a buscar modulações e inclusive Aristóxeno de Tarento conta que um de seus contemporâ-neos, Telésias de Tebas, apesar de ter sido educado desde jovem na prática da mais bela música – acabou chegando à idade madura completamente dominado pela música do teatro ‘politonal’ " 15.

Plutarco nessa obra descreve os altos e baixos da evolução da música antiga Grega, que diga-se de passagem, Platão muito bem soube retratar em seu diálogo As Leis.




A sophia musical



Nos textos da República e do Fédro16, Platão exprime suas preferências pelos pitagóricos, em oposição aos empiristas e à ciência harmônica. Trata-se da rivalidade de duas escolas que no correr dos séculos elaboraram dois sistemas opostos. A obra Os Elementos Harmônicos de Aristoxeno é um dos melhores documentos que registra essas duas tendências rivais17.


Os pitagóricos como grandes matemáticos que eram, empregavam os métodos empíricos para medir os intervalos musicais18 em função do comprimento das cordas – que por conseguinte, produziam os arkhés, (ponto de partida de um sistema), isto é, o monocórdio tradicional utilizado pela escola. Os músicos empíricos se baseavam na função da nota e tentavam medir os intervalos, decompondo-os em elementos audíveis. A fim de medir um intervalo pelo número de elementos que ele contém, determinaram o menor intervalo perceptível19.


Aristóxeno falando sobre seus adversários harmonicistas, expressou-se da seguinte forma: "Contrariando os sentidos como sendo sujeitos a erros, eles fabricavam princípios racionais, afirmando que o agudo ou o grave se traduziam por meio de certas relações numéricas ... Essa teoria, não levava em conta o tema e variava completamente segundo os fenômenos sonoros"20.
O método dos empíricos teve por base a sensação e a experiência. Eles se esforçaram por ultrapassar os limites do racional, visando em princípio, reproduzir a percepção e investigar segundo certas regras, as condições determináveis, matemáticas – como por exemplo, o comprimento relativo das cordas.

Platão substimava os músicos empiristas, porque eles adotavam como critério de seus estudos os intervalos e faziam isto, apenas pelo prazer do ouvido21 e não pela exatidão das relações sonoras. Platão parece permanecer sempre de acordo com Arquitas de Tarento (seu contemporâneo)22 e partidário do método que busca a medida, em oposição à αισθησις (aisthesis). Assim, Platão reconhece o valor da acústica pitagórica quando diz na República: " – É provável que, assim como os olhos foram formados para a astronomia, os ouvidos foram formados para o movimento harmônico e as próprias ciências são irmãs uma da outra, tal como afirmam os pitagóricos e nós, ó Glaucon, concordamos. Ou não será assim? É respondeu ele."23.


Apesar de reconhecer o valor das investigações pitagóricas, Platão prefere permanecer mais ligado ao estudo da ciência harmônica, pois, ele exige acima de tudo, que o conhecimento seja exato e reprova de algum modo, as experiências harmonicistas da escola pitagórica, que ao seu ver, limitavam-se a procurar as relações numéricas, sem perceberem onde realmente residiam suas diferenças – e, isto podemos conferir na República 531 a,b,c quando ele diz: "É que eles fazem o mesmo que os que se dedicam à astronomia. Com efeito, eles procuram os números nos acordes que escutam, mas não se elevam até à questão de observar quais são os números harmônicos e quais não são – e, por que razão diferem" – e, Sócrates enfatiza ainda nas Leis: " – Ora como a empresa é vasta, perguntar-lhes-emos o seu parecer sobre estas matérias e outras ainda além destas. Mas em todas as circunstâncias manteremos o nosso princípio. – Qual ? – Que não tentem jamais que os nossos educandos aprendam qualquer estudo imperfeito que não vá dar ao ponto onde tudo deve dar, como dizíamos há pouco, a propósito da astronomia. Ou não sabes que fazem outro tanto com a harmonia? Efetivamente, ao medirem os acordes harmônicos e sons uns com os outros, produzem um labor improfícuo, tal como os astrônomos. – Pelos deuses ! É ridículo, sem dúvida, falar de não sei quais intervalos mínimos e apurarem os ouvidos como se fossem para captar a voz dos vizinhos; uns afirmam ouvir no meio dos sons um outro som – e, que o menor intervalo é que deve servir de medida; outros ainda sustentam que é igual aos que já soaram e ambos colocam os ouvidos à frente do espírito."24. Esse trabalho Platão qualificou como sendo do δαιμονον, esta figura transcendente que no Timeu, busca conhecer além dos fenômenos, a exegese da estrutura do cosmos. Platão concorda com os pitagóricos no que concerne à idéia de parentesco que acreditam existir entre a "astronomia e a música"25 mas, em seguida, distancia-se deles, voltando-se para a "dialética"26, que aos seus olhos, conduz ao Bem e ao Belo. Aristóteles27 confirma o que Platão expõe na República, dizendo que o que distinguiu Platão dos pitagóricos, foi essencialmente, as idéias concebidas como "separadas", a noção de fazer nascer o múltiplo da unidade, o que tem por conseqüência, remeter à unidade, quer dizer à mônada, a um princípio ontológico, que é para Platão um princípio de inteligibilidade.




Musas: fontes de inspiração para Platão



A sofística é muito antiga e em geral era praticada de uma maneira indireta e dissimulada, usando a máscara da poesia, da música e do ritual iniciático. Platão reconheceu nos poetas e nos músicos os primeiros sofistas, que foram precursores em matéria de pedagogia "não intencionalmente, mas pela força das circunstâncias"28. Assim Homero e Hesíodo são colocados nessa categoria e qualificados com os títulos de "teólogos" ou "crianças dos deuses"29.


Platão reconhecia neles os especialistas do sagrado, os homens mais dispostos a falar do que lhes é mais familiar: o que se refere às divindades. E se ao próprio Platão não repugna fazer uso do mito, das fábulas, de citações poéticas e das crenças populares, é porque ele reconhece na inspiração profética e na poética, um valor real e um caráter de verossimilhança, apesar das críticas que lhe são impostas.


A encarnação perfeita, no plano da realidade divina desta fonte inspiradora é a Musa. Ela é a expressão total da noção global de Mousikê30, "não somente som e ritmo, porém também lógos vivo"31. As Musas aparecem pois como uma garantia divina que justifica esse recurso irracional que Platão concede aos artistas.


Contudo o uso dos mitos, das alegorias e dos símbolos tão transpostos quanto eles sejam,32 não foi inventado por Platão, já que ele reconhece que "o melhor das coisas" nos vem pela "mania", que não significa loucura no sentido literal da palavra, mas uma inspiração divina ou uma possessão. Platão reconhece quatro tipos de "mania". Ele remete a Apolo a inspiração divinatória, a Dionísios a inspiração telestikós, às Musas a inspiração poética e a quarta à Afrodite e a Eros.


Pelo que diz respeito à terceira espécie de possessão e de delírio ... "este sentimento toma conta da alma ainda tenra, onde nada ainda penetrou, acordando-a e colocando-a em movimento pelas Odes ou qualquer outra poesia – e, embelezando as inúmeras ações dos antigos, forma aqueles que vêm em seguida"33. No conjunto dos diálogos, o tema da inspiração remete-se antes aos poetas do que aos músicos. Mas as Musas sendo a fonte comum dos dois, poder-se-ia referir às afirmações do filósofo tão bem aos primeiros quanto aos segundos, pois por sua própria confissão: "Entre as palavras que são colocadas música e aquelas que são simplesmente faladas, não tem diferença"34.


Na Apologia e no Ion os poetas são comparados aos profetas e Coriban-tes35; a potência divina os inspira. O poeta e o músico são possuídos por um deus. Seu papel é de receber passivamente o que lhe foi ditado: "Quando o poeta está instalado sobre o tripé da Musa, ele não é mais senhor de seu espírito, mas, à maneira de uma fonte, ele deixa livremente fluir o que lhe for inspirado"36. O poeta é simplesmente o porta-voz do deus, como a Pítia em Delfos, ele não pode explicar o que ele escreve, nem ensinar aos outros o que ele faz. Como os Coribantes, que não usam da razão quando dançam, os poetas quando compõem, tem uma ruptura do equilíbrio mental37. Nesse sentido, as concepções do entusiasmo e do êxtase derivam do papel de intermediário que representa o poeta entre a divindade e os homens38.


Essa tese de Platão está em contradição com sua concepção da criação musical fundada sobre o conceito de sophia. De toda maneira, nosso filósofo condena os poetas que não são senão técnicos, sem inspiração. Ele é também hostil em relação àqueles cuja inspiração é impura39. O poeta-músico que pode unir as duas condições: a inspiração pura e ser senhor de sua técnica, é unicamente aceito junto ao legislador. Platão, visivelmente se inspirava nos hinos exemplares do pitagorismo.40 No pitagorismo, o hino não é senão um meio de fornecer valores exemplares numa perspectiva educadora41. Dessa maneira, Platão formula suas leis no que concerne à criação artística.


A concepção da Musa, dispensadora de inspiração, da qual música e poesia fazem parte, remonta a uma época bastante antiga. Os pitagóricos aceitaram essa crença tão antiga de que o valor do poeta é devido à sua possessão pelo divino42. No Crátilo, Platão vai mais longe, e dia que "Mousa" e "Mousiké", derivam de "mosthai", que significa "estar apaixonado", "desejar" e é por isso, que a pesquisa e a filosofia receberam essas denominações43. No Fédro, o próprio filósofo é considerado ser possuído por um deus e que seu pensamento é alado44. "eu posso pois dizer, me parece, que é em vista dessas duas coisas, a coragem e a filosofia que um deus deu aos homens as duas artes: a Música e a Ginástica. Ele não as deu para alma e para o corpo senão por acessório, mas bem mais por essas duas qualidades : Coragem e Filosofia, afim de que elas se harmonizem juntas, pelo justo grau de tensão ou de relaxamento que lhes oferece"45. De toda maneira, a força liberadora das Musas é comparável àquela das especulações filosóficas. Platão está convencido desse fato; a influência pitagórica é provável, se bem que seja difícil defini-la com precisão. Em todo caso, nosso filósofo permanece ligado à música da tradição46.


No Ion, no Fédro e no segundo livro das Leis, o tratamento platônico da matéria musical é sistemático, enquanto que no Crátilo, ela é considerada como aparentemente mais fortuita. Contudo os termos de "Mousa" de "Mousikós" e de "Mousiké" através do conjunto da obra de Platão, se define no seu uso a partir de um núcleo central. O papel dos músicos na cidade dos Magnetos se limita à orga-nização desses influxos que eles recebem em estado de euforia fecunda. Visadas egoístas, fora das leis e dos legisladores em matéria musical47 são reprováveis. O epíteto de "mousikós" é concedido ao homem lúcido e equilibrado, cuja vida interior é qualificada pela sabedoria, que é a Harmonia Maior48. Ao contrário, o profano no domínio das Musas, é colocado no mesmo plano do não-filósofo49.


O mito das Cigarras condensa resumidamente tudo o que Platão quis dizer em relação à função das Musas.


Nesse mito das cigarras que faz ressaltar e aceder a um plano superior a questão então debatida -- àquela da eloqüência – o culto simultaneamente voltado à Calíope e à Urânia, simboliza a relação estreita e indissociável que se estabelece entre a ciência harmônica e a astronomia, como se encontrará expressa na República50. Da mesma maneira, esse procedimento coloca em evidência as relações entre as matemáticas e as artes, já que também Calíope representa tão bem a Musa da eloqüência, do verbo, das artes – e Urânia a Musa da astronomia, da ciência matemática.




1 Platão, Crátilo, 405 a, b, c

2 Boyance, P., Le culte des Muses ches le philosophes Grecs, Paris, 1936, p. 15, n°2.

3 Platão, Protagoras g., 324 e ; Ilíade, XV, 412.

4 Platão, Protagoras., 321 d. Existe uma aproximação de ‘sophia’ com a ‘techné’, afirma Píndaro em Ol., Vll, 98.

5 Théag., 123 c; Lach., 194 c.

6 Platão., Ion, 542 a; Rép., ll, 365

7 F.,Lasserre, Plutarque: De la Musique, Hymne à Hermes, 483; cf. 511; Este termo manterá por longo tempo como arte musical, designado não somente nos versos de Homero onde encontra-se como a habilidade de construir navios, implicando no conhecimento das leis mestres de uma técnica difícil. Nos versos do Hino a Hermes encontra-se a forte relação com a execução da cítara, acompanhada da "techné"; S. Liddell Scott, vide "sophia", "sophos".

8 Ibidem, pp. 15-16.

9 Detienne, M., Homère, Hésiode et Pithagore poésie e philosophiedans le pytagorisme ancien, Bruxelles, 1962, cap. Lll, Achille, p. 39 e seg.. Page, D.L., Alcman: The Part-eneion, Oxford, 1951, Lasserre, M., Ibidem, Moutsopoulos, E., La Musique dans l’oeuvre de Plaon, Paris, 1959.

10 Phorminx: instrumento de cordas da Antiguidade Grega, Ilíade, lX, 186 e Seg., Plutarque, De la Musique, 40.

11 Alcman, frag., 13.

12 Górgias, 449 d- 450a.

13 Cármide, 170 a - d. Nessa passagem Sócrates distingue ciência de saber e suas relações com a música.

14 Plutarque, De la Musique, 30, 25.

15 Plutarque, De la Musique, 30, p. 172.

16 République, Vll, 531 a-b; Phèdre, 268 d-e.

17 L. Laloy, Aristoxène de Tarente, discípulo de Aristóteles e a Música da Antiguidade, Paris, 1904.

18 République, Vll, 531 a

19 Arché, ponto de partida de um sistema.

20 Aristoxène, Elementos Harmônicos, 123, 124

21 République, Vll, 531 a-b.

22 République, Vll, 530 d-e.

23 Ibidem.

24 République, Vll, 531 c.

25 Ibid., 531 a-b; no Phèdre a imagem que nos dá é semelhante. Ele trata o músico como um tangedor da lira e seus conhecimentos sobre as tensões das cordas não justificam o título de harmonicista.

26 République, Vll, 504 c.

27 Mét., 987 b 31.

28 Prot., 316 d-e.

29 Timée, 40 d-e.

30 J. Festugiere, R.E.G., 1938, p. 196 à propósito da Mousiké, o sentido técnico é a poesia acompanhada de cítara e movimentos ritmicos.

31 Dies, Autour de Platon. A transposição platônica.

32 Phèdre, 245 a, 265 b.

33 République, lll, 398 b.

34 Ibid., lll, 398 c-d.

35 V. Goldschmidt, Les Dialogues, pp. 94-109

36 Lois, lV, 719 c.

37 Ion, 533 e- 534 d; Apologie, 22 b-c; Lois, lll, 682 a.

38 Ibid., Ion e Apologie

39 Lois, Vll, 801 b-d; lV, 719 c-d.

40 Lois, Vll, 829 e seg; République, X, 607 a.

41 H. Koller, Die Mimesis der Antike, Berne, 1954.

42 P. Boyance, Le culte des Muses chez les philosophes Grecs, Paris, 1936, p. 15, n°2.

43 P. Boyance, La doctrine d’Euthyphron dans le Cratyle, R.E.G., 1941, pp. 141-175. Crat., 406 a ; também na République, 411 c-412 a.

44 Phèdre, 249 c-d.


terça-feira, 3 de junho de 2008

Harmonia Mundi - História da Música vol.7



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O ETHOS NA MÚSICA GREGA




O ETHOS NA MÚSICA GREGA






por
Najat Nasser
Professora do Departamento de Música, Instituto de Artes, UNICAMP.





Na antiga Grécia a música era uma atividade vinculada a todas as manifestações sociais, culturais, e religiosas. Dentre todas as artes, era a mais relevante. Para os gregos a música era tão importante e universal como o próprio idioma. Como forma de expressão, tinha o poder de influenciar e modificar a natureza moral do homem e do estado. Seu grau de importância pode ser comparado aos princípios da ética e da política, como declara Damon: "Não se pode alterar os modos musicais sem alterar ao mesmo tempo as leis fundamentais do Estado"1.

A música constitui um dos principais interesses na organização política do estado grego. Como em outras instâncias, suas regras deveriam ser observadas pelo estado, e por essa razão não caberia deixá-las a critério dos artistas. Por isso, a formação musical era um requisito básico na educação de qualquer cidadão livre, pois caberia a ela direcionar a conduta moral, social e política de cada indivíduo, para cumprir adequadamente seu papel junto ao estado. A música deveria exaltar as boas qualidades no indivíduo e ao mesmo tempo suscitar o significado de ordem, dignidade, capacidade de decisões rápidas, além do equilíbrio, simplicidade e temperança.

As questões relativas aos princípios éticos e estéticos da música são tratadas por Platão, principalmente na República e nas Leis. Na concepção de Platão, a música expressa as relações intrínsecas existentes entre as progressões musicais e os movimentos da alma. A função da música, acima de tudo, era buscar o equilíbrio da alma, assim como produzir um conjunto harmônico de conhecimentos. Para os gregos, os conceitos de concordância e proporção constituíam a base de todas as manifestações, éticas, estéticas e intelectuais, e a música por si só agregava todos esses princípios. As formas de expressão rítmicas, melódicas e poéticas, eram determinadas por normas que pudessem conduzir o indivíduo à essência desses princípios. A educação musical poderia estruturar o indivíduo e o estado, e sua prática representava a condição suficiente para determinar as normas da conduta moral. Neste contexto, a palavra nómos (no/moj) era utilizada pelos gregos no seu sentido duplo: poderia designar melodias tradicionais, e leis morais, sociais e políticas do estado.

Os gregos acreditavam que existia uma correlação entre sons musicais e processos naturais capazes de influenciar a conduta humana. O elo que transforma essa força em música era determinada por pequenos grupos melódicos que serviam como unidades estruturais para compor melodias mais extensas. Esses grupos eram denominados pelos gregos de nómos, plural nómoi, e representavam toda a força dinâmica da música. Esse princípio tem sua origem, e grande significação, na música das culturas orientais, mas é somente na Grécia que atinge seu desenvolvimento máximo O Ethos na música grega com a doutrina do ethos. Na perspectiva musical, a doutrina do ethos expressa a ordenação, diferenciação e o equilíbrio dos componentes rítmicos, melódicos e poéticos. A sincronicidade de todos esses elementos constituía um fator determinante na influência da música sobre o caráter humano. Essa concepção revela o porque a música era considerada como um atributo fundamental no sistema político e educacional do estado. De acordo com a doutrina do ethos, a música tem o poder de agir e modificar categoricamente os estados de espírito nos indivíduos. Pode induzir à ação; fortalecer ou de modo
contrário enfraquecer o equilíbrio mental; ou ainda gerar um estado de inconsciência, onde a força de vontade fica totalmente ausente nos indivíduos.

A definição de Herman Abert, aponta as relações existentes entre o conceito de ethos e seus efeitos:

"A idéia do ethos se fundamenta no postulado de que entre os movimentos da música e os movimentos psíquicos da homem existam relações íntimas que possibilitam à música um influxo determinado sobre o caráter humano. Prova disso é que os gregos atribuíam uma importância especial às inflexões de nossas faculdades volitivas; importava apenas despertar estados de ânimos passivos".2

De acordo com os filósofos, os efeitos da música sobre o comportamento humano podem ocorrer de quatro maneiras distintas: primeiro, pode induzir à ação, ethos praktikón; segundo, pode manifestar a força, o ânimo, ethikón; terceiro, pode provocar a fraqueza no equilíbrio moral, ethos malakón, ou threnôdes, que segundo Platão resulta dos cantos trenódicos baseados nas harmonias plangentes como lídia mista e a lídia tensa3; e quarto, pode induzir temporariamente, à ausência das faculdades volitivas produzindo um estado de inconsciência, ethos enthousiastikón. Esse ethos está associado aos ritos dionisíacos propício para induzir ao êxtase e o delírio4.

A doutrina do ethos constitui o paradigma da República de Platão, reflete o espírito da pólis clássica ideal - a cidade preserva a unidade moral, social e política - no seu sentido mais profundo e preciso. Na República, a música seqüencia a construção moral do caráter e da conduta, no homem e no estado. As qualidades místico-religiosa e ritualística da música são aqui substituídas e centradas nas qualidades morais. Em consonância com esses princípios, as composições musicais deveriam ser melodicamente e ritmicamente regidas por um conjunto de regras e normas preestabelecidas. Essa concepção pode representar uma atitude arbitrária contra a liberdade da criação artística, mas isso é mera aparência, pois o objetivo maior era que se mantivessem vivas as tradições do passado. Na República, o espírito dos deuses e heróis homéricos são exaltados, com a finalidade de impedir a manifestação de novas tendências musicais que emergiam com a doutrina hedonista. A liberdade dos grandes heróis, a liberdade sem limites que transcende as fronteiras do tempo e do espaço, devem ser preservadas, e não podem ser supridas por liberdades circunstanciais e transitórias.

Na República, Platão considera a música e a ginástica como os elementos essenciais na educação. A ginástica não vem antes da música, mas deve precedê-la e a música é quem deve predominar, porque é o aperfeiçoamento da alma que enobrece e aperfeiçoa o corpo.

"Também aqui é necessário que comece desde a infância, que seja feita com grande cuidado e se prolongue durante a vida inteira (...). Não creio que o corpo bem constituído possa melhorar a alma com suas excelências corporais, mas, pelo contrário, é a alma boa que, mercê de suas virtudes, aperfeiçoa o corpo na medida em que isso for possível (...) a alma convenientemente educada se encarregará do corpo".5

A prática isolada da ginástica nutre nos indivíduos a brutalidade e dureza, e a da música induz à mansidão e letargia do espírito. A verdadeira harmonia da alma, na mais justa proporção, resulta entre a combinação equilibrada da música e da ginástica. Para manter a tradição, Platão sugere que a boa música seja uma arte cultivada e aperfeiçoada por todos os cidadãos. A educação musical era uma prerrogativa da cultura grega.

Na Arcádia, o estado regulamentava que todos os indivíduos, até a idade de trinta anos, deveriam ser submetidos à educação musical. Em Atenas, Esparta e Tebas, todos os cidadãos livres deveriam aprender a tocar aulos e participar das atividades corais. A prática do canto coral era prescrita em ordem cronológica, onde os eventos históricos e os grandes feitos eram contados através do canto. Iniciava-se pelos hinos mais antigos de louvor e glorificação aos deuses e heróis, e concluía-se com as novas tendências musicais praticadas na época. Na República, o conjunto de músicas passa por uma seleção, e permanecem aquelas que possam melhor contribuir para a formação da conduta moral do cidadão.

Na cultura grega, os dois instrumentos mais utilizados e apreciados eram a cítara e o aulos. A cítara, um instrumento de cordas, possuía um som suave, enquanto que o aulos, um instrumento de sopro com palheta, possuía um som estridente e penetrante. Segundo Plutarco, Apolo não era somente o inventor da música, mas também o inventor das músicas para cítara e aulos6. Os gregos acreditavam que esses instrumentos, em função de suas características timbrísticas, fossem dotados de qualidades éticas. Da mesma maneira, cada um dos modos possuía seu próprio ethos; alguns exaltavam as qualidades nobres, enquanto que outros induziam à violência e degradação moral. Supõe-se, que essas qualidades podem estar relacionadas à sua procedência uma vez que a eles era atribuído o mesmo nome das tribos nacionais. É possível que as diferentes qualidades éticas refletissem a índole e o caráter de cada uma.

A doutrina do ethos, na Grécia, foi desenvolvida a partir de pequenos grupos ou fórmulas melódicas denominadas de nómos. Essas fórmulas existem, tradicionalmente, em quase todas as músicas orientais, mas com diferentes denominações. Na música grega, os núcleos nômicos eram utilizados como unidades básicas nas formações melódicas mais extensas. Na antigüidade, essas fórmulas constituíam o princípio dinâmico de toda música. Os nomoi eram naturalmente dotados de uma natureza expressiva, pelo fato de ocorrerem em uma determinada região da voz. No início, eram essencialmente vocais, e mais tarde passaram a ser utilizados nas composições instrumentais, como a cítara, lira e aulos. Musicalmente, essas fórmulas melódicas geravam padrões dentro das melodias, e é por isso que a palavra nomos significa lei. Neste contexto, as fórmulas nômicas constituíam as melodias e ao mesmo tempo revelavam seu valor expressivo. A elaboração de todos esses conceitos veio somente mais tarde com a doutrina do ethos, onde a força expressiva das melodias eram implicitamente veiculadas.



1 República, 424. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
2 SALAZAR, A. La Música en la Cultura Grega. México, El Colégio de México, 1954, pp. 325-6.
3 República, 398.
4 SALAZAR, Op.cit., p. 326.
5 República, 410.

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