sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Harmonia Mundi - História da Música vol.16


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História da Música Ocidental - Capítulo 1, parte 1.3. Antiga Roma e primórdios do Cristianismo

[Boécio (c.480-524) - Fundamentos da Música, cópia de 1150]




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A MÚSICA NA ANTIGA ROMA — Não sabemos se os Romanos terão sido responsáveis por alguma contribuição importante, quer para a teoria, quer para a prática musical. Roma foi buscar a sua música erudita à Grécia, especialmente depois de esta região se tornar uma província romana, em 146 a. C., e é possível que esta cultura importada tenha substituído uma música indígena, etrusca ou italiana, da qual nada sabemos. A versão romana do aulo, a tíbia, e os seus tocadores, os tibicinos, desempenhavam um papel importante nos ritos religiosos, na música militar e no teatro. Destacavam-se ainda vários outros instrumentos de sopro. A tuba, uma trombeta comprida, direita, era também utilizada em cerimónias religiosas, estatais e militares. Os instrumentos mais característicos eram uma grande trompa circular, em forma de G, chamada corno, e a sua versão de menores dimensões, a buzina. A música deve ter estado presente em quase todas as manifestações públicas. Mas desempenhava também um papel nas diversões particulares e na educação. Muitas passagens das obras de Cícero, Quintiliano e outros autores revelam que a familiaridade com a música, ou pelo menos com os termos musicais, era considerada como fazendo parte da educação do indivíduo culto, tal como se esperava que tal indivíduo soubesse falar e escrever o grego.

Nos tempos áureos do Império Romano (os dois primeiros séculos da era cristã) foram importadas do mundo helenístico obras de arte, arquitectura, música, filosofia, novos ritos religiosos e muitos outros bens culturais. Numerosos textos documentam a popularidade de virtuosos célebres, a existência de grandes coros e orquestras, bem como de grandiosos festivais e concursos de música. Muitos imperadores foram patronos da música. Nero aspirou até a alcançar fama pessoal como músico. Com o declínio económico do império, nos séculos III e IV, a produção musical em grande escala, naturalmente dispendiosa, do período anterior acabou por desaparecer.

Resumindo: embora haja uma grande incerteza quanto as questões de pormenor, sabemos que o mundo antigo legou a Idade Média algumas ideias fundamentais no domínio da música: (1) uma concepção da música como consistindo essencialmente numa linha melódica pura e despojada; (2) a ideia da melodia intimamente ligada as palavras, especialmente no tocante ao ritmo e a métrica; (3) uma tradição de interpretação musical baseada essencialmente na improvisação, sem notação fixa, em que o intérprete como que criava a música de novo a cada execução, embora segundo convenções comummente aceites e servindo-se das fórmulas musicais tradicionais; (4) uma filosofia da música que concebia esta arte, não como uma combinação de belos sons no vácuo espiritual e social da arte pela arte, mas antes como um sistema bem ordenado, indissociável do sistema da Natureza, e como uma força capaz de afectar o pensamento e a conduta do homem; (5) uma teoria acústica cientificamente fundamentada; (6) um sistema de formação de escalas com base nos tetracordes; (7) uma terminologia musical.

Parte desta herança (n.os 5, 6 e 7) era especificamente grega; o resto era comum a maior parte, se não a totalidade, do mundo antigo. Os conhecimentos e as ideias no domínio da música foram transmitidos, embora de maneira incompleta e imperfeita, ao Ocidente por diversas vias: a igreja cristã, cujos ritos e música derivaram inicialmente, em grande medida, de fontes judaicas, se bem que despojados dos instrumentos e danças que os acompanhavam no templo, os escritos dos Padres da Igreja e os tratados enciclopédicos do princípio da Idade Média, que abordavam a música juntamente com uma quantidade de outros temas.


Cortejo fúnebre romano num relevo de um sarcófago de Amiternum, final do século I a. C. Na fila de cima vêem-se dois tocadores de corno e um de lítuo, ambos instrumentos de sopro metálicos etrusco-romanos. Abaixo destes vemos quatro tocadores de tíbia, que era semelhante ao aulo grego (Áquila, Museo Cívico)

Os primeiros séculos da igreja cristã

Algumas características da música da Grécia e das sociedades mistas orientais-helenísticas do Mediterrâneo oriental foram seguramente absorvidas pela igreja cristã nos seus dois ou três primeiros séculos de existência. Mas certos aspectos da vida musical antiga foram liminarmente rejeitados. Um desses aspectos foi a ideia de cultivar a música apenas pelo prazer que tal arte proporciona. E, acima de tudo, as formas e tipos de música associados aos grandes espectáculos públicos, tais como festivais, concursos e representações teatrais, além da música executada em situações de convívio mais íntimo, foram por muitos considerados impróprios para a Igreja, não porque lhes desagradasse a música propriamente dita, mas porque sentiam a necessidade de desviarem o número crescente dos convertidos de tudo o que os ligava ao seu passado pagão. Esta atitude chegou mesmo a suscitar, de início, uma grande desconfiança em relação a toda a música instrumental.


A HERANÇA JUDAICA — Durante muito tempo os historiadores da música pensaram que os primeiros cristãos tinham copiado os serviços religiosos pelos da sinagoga judaica. Os especialistas mostram-se hoje mais cépticos em relação a esta teoria, dado que não há provas documentais que a confirmem. Julga-se até que os primeiros cristãos terão evitado copiar os serviços judaicos por forma a sublinharem o carácter distinto das suas crenças e rituais.

É necessário estabelecer uma distinção entre as funções religiosas do templo e da sinagoga. O templo — ou seja, o segundo templo de Jerusalém, que existiu no mesmo lugar do primeiro templo de Salomão de 539 a. C. até a sua destruição pelos Romanos em 70 d. C. — era um local de culto público. Esse culto consistia principalmente num sacrifício, em geral de um cordeiro, realizado por sacerdotes, assistidos por levistas, entre os quais se contavam vários músicos, e na presença de leigos israelistas. Umas vezes o sacerdote e outras também o crente leigo comiam parte do animal "assado". Estes sacrifícios realizavam-se diariamente, de manhã e de tarde; no sabbath e nas festas havia sacrifícios públicos suplementares. Enquanto decorria o sacrifício, um coro de levitas — com doze elementos, pelo menos — cantava um salmo, diferente para cada dia da semana, acompanhado por instrumentos de cordas. Nas festas mais importantes, como a véspera da Páscoa, cantavam-se os salmos 113 a 118, que têm refrões em aleluia, enquanto os crentes faziam os sacrifícios pessoais, e em seguida um instrumento de sopro semelhante ao aulo vinha associar-se ao acompanhamento de cordas. Os crentes também rezavam no templo ou voltados para o templo, mas a maior parte das orações fazia-se em casa ou na rua. Há um paralelismo evidente entre o sacrifício no templo e a missa cristã, que era um sacrifício simbólico, em que o sacerdote partilhava do sangue sob forma de vinho e os crentes se associavam a partilha do corpo de Cristo sob forma de pão. Todavia, sendo a missa igualmente uma comemoração da última ceia, imita também a refeição judaica dos dias de festa, como a refeição ritual da Páscoa, que era acompanhada por música cantada.

A sinagoga era um centro de leituras e homilias, bem mais do que de sacrifícios ou orações. Aí, em assembleias ou serviços, as Escrituras eram lidas e comentadas. Determinadas leituras eram feitas nas manhãs normais do sabbath e nos dias de mercado, segundas-feiras e quartas-feiras, enquanto havia leituras especiais para as festividades das peregrinações, para as festividades menores, para os dias de jejum e para os dias de lua nova. Após a destruição do templo, o serviço da sinagoga incorporou elementos que substituíam os sacrifícios do templo, mas esta evolução deu-se já, provavelmente, demasiado tarde — no final do século I ou no século II — para servir de modelo aos cristãos. Segundo parece, o canto quotidiano dos salmos só começou a realizar-se bastante depois de iniciada a era cristã. O que a liturgia cristã ficou a dever a sinagoga foi principalmente a prática das leituras associadas a um calendário e o seu comentário público num local de reunião dos crentes.

À medida que a igreja cristã primitiva se expandia de Jerusalém para a Ásia Menor e para o Ocidente, chegando a África e a Europa, ia acumulando elementos musicais provenientes de diversas zonas. Os mosteiros e igrejas da Síria tiveram um papel importante no desenvolvimento do canto dos salmos e dos hinos. Estes dois tipos de canto religioso parecem ter-se difundido a partir da Síria, via Bizâncio, até Milão e outros centros ocidentais. O canto dos hinos é a primeira actividade musical documentada da igreja cristã (Mat., 26, 30; Mar., 14, 26). Por volta do ano 112 Plínio, o Jovem, faz referência ao costume cristão de cantar "uma canção a Cristo como se ele fosse um deus" na província de que era governador, a Bitínia, na Ásia Menor[1]. O canto dos cristãos era associado ao acto de se comprometerem através de um juramento.


BIZÂNCIO — As igrejas orientais, na ausência de um autoridade central forte, desenvolveram liturgias diferentes nas várias regiões. Embora não subsistam manuscritos anteriores ao século IX com a música usada nestes ritos orientais, algumas inferências podem ser feitas quanto aos primórdios da música religiosa no Oriente.

A cidade de Bizâncio (ou Constantinopla, hoje Istambul) foi reconstruída por Constantino e designada em 330 como capital do seu império reunificado. A partir de 395, data em que foi instaurada a divisão permanente entre Império do Oriente e do Ocidente, até a sua conquista pelos Turcos, em 1453, ou seja, por um período de mais de mil anos, esta cidade permaneceu como capital do Império do Oriente. Durante boa parte deste lapso de tempo Bizâncio foi a sede do governo mais poderoso da Europa e o centro de uma cultura florescente, onde se combinavam elementos helenísticos e orientais. A prática musical bizantina deixou marcas no cantochão ocidental, particularmente na classificação do repertório em oito modos e num certo número de cânticos importados pelo Ocidente em momentos diversos entre o século VI e o século IX.

As peças mais perfeitas e mais características da música medieval bizantina eram os hinos. Um dos tipos mais importantes é o kontakion estrófico, espécie de elaboração poética sobre um texto bíblico. O mais alto expoente da composição de kontakia foi um judeu sírio convertido que exerceu a sua actividade em Constantinopla na primeira metade do século VI, S. Romano Melódio. Outros tipos de hinos tiveram origem nos breves responsos (troparia) intercalados entre os versículos dos salmos e que foram musicados com base em melodias ou géneros musiciais, talvez, da Síria ou da Palestina. Estas inserções foram ganhando importância crescente e algumas de entre elas acabaram por se converter em hinos independentes, de que existem dois tipos principais: os stichera e os kanones. Os stichera eram cantados entre os versículos dos salmos normais do ofício. Um kanon era uma composição em nove partes, baseada nos nove cânticos ou odes da Bíblia[2]. Cada uma dessas partes correspondia a uma das odes, e todas continham várias estrofes, ou troparia, cantadas com a mesma melodia. A primeira estrofe de cada ode era o seu heirmos, ou estrofe-modelo, e as respectivas melodias eram compiladas em livros denominados hermologia. Cerca do século X a segunda ode começou a ser habitualmente omitida.

Os textos dos kanones bizantinos não eram criações inteiramente originais, mas sim colagens de frases estereotipadas. Do mesmo modo, as suas melodias também não eram inteiramente originais; eram construídas segundo um princípio comum a toda a música oriental, chamado centonização, igualmente observável nalguns cânticos ocidentais. As unidades estruturais não eram uma série de notas organizadas numa escala, mas antes breves motivos ou fórmulas; de entre estes esperava-se que o criador da melodia escolhesse alguns e os combinasse para compor a sua melodia. Alguns dos motivos deviam ser usados no princípio, outros no meio e outros ainda no final de uma melodia, enquanto outros serviam de elos de ligação; havia também fórmulas ornamentais padronizadas (melismas). Não sabemos ao certo até que ponto a escolha das fórmulas ficava ao critério do cantor individual ou era previamente fixada por um "compositor". Quando, porém, as melodias vieram a ser registadas em manuscritos com notação musical, o repertório de fórmulas já era praticamente fixo.

Os tipos ou modos de melodias têm designações diferentes nas diversas culturas musicais — rága na música hindu, maqam na música árabe, echos na grega bizantina — e em hebraico são conhecidos por vários termos traduzíveis por modo. Um rága, maqam, echos ou modo é, ao mesmo tempo, um vocabulário das notas disponíveis e um repertório de motivos melódicos; os motivos de cada grupo têm como denominador comum o facto de exprimirem mais ou menos a mesma gama de sentimentos, o de serem compatíveis em melodia e ritmo e o de derivarem da mesma escala musical. A escolha de determinado rága ou modo pode depender da natureza do texto que se pretende cantar, da ocasião em que vai ser cantado, da estação do ano ou mesmo (como acontece na música hindu) da hora do dia. A música bizantina tinha um sistema de oito echoi, e as compilações de melodias para kanones organizavam-se de acordo com este sistema. Os oito echoi bizantinos agrupavam-se em quatro pares, e os quatro pares tinham por notas finais, respectivamente, Ré, Mi, Fá e Sol. A exemplo do que sucedia em Bizâncio, passaram a distinguir-se, por volta do século VIII ou IX, oito modos diferentes no canto ocidental, e as finais acima indicadas eram também as finais dos quatro pares de modos ocidentais. Assim, as bases do sistema ocidental de modos parecem ter sido importadas do Oriente, embora a elaboração teórica do sistema de oito modos do Ocidente tenha sido fortemente influenciada pela teoria musical grega, tal como foi transmitida por Boécio.



LITURGIAS OCIDENTAIS — No Ocidente, como no Oriente, as igrejas locais eram de início relativamente independentes. Embora partilhassem, é claro, uma ampla gama de práticas comuns, é provável que cada região do Ocidente tenha recebido a herança oriental sob uma forma ligeiramente diferente; estas diferenças originais combinaram-se com as condições locais particulares, dando origem a várias liturgias e corpos de cânticos distintos entre os séculos V e VIII. Com o passar do tempo a maioria das versões locais (a ambrosiana é uma das excepções) desapareceram ou foram absorvidas pela prática uniforme que tinha em Roma a sua autoridade central. Entre o século IX e o século XVI, na teoria e na prática, a liturgia da igreja ocidental foi-se romanizando cada vez mais.

Durante o século VII e o princípio do século VIII o controle da Europa ocidental estava repartido entre Lombardos, Francos e Godos, e cada uma destas divisões políticas tinha o seu repertório de cânticos. Na Gália — território que correspondia, aproximadamente, a França actual — havia o canto galicano, no Sul da Itália, o benaventino, em Roma, o canto romano antigo, em Espanha, o visigótico ou moçárabe, na região de Milão, o ambrosiano. (Mais tarde a Inglaterra desenvolveu o seu dialecto do canto gregoriano, chamado sarum, e que subsistiu do final da Idade Média até a Reforma.)





Graduale - St. Gallen, Stiftsbibliothek, Codex 339 – ca. 980-1000




A liturgia galicana, que incluía elementos célticos e bizantinos, esteve em vigor entre os Francos quase até ao final do século VIII, momento em que foi suprimida por Pepino e pelo seu filho Carlos Magno, que impuseram o canto gregoriano nos seus domínios. Esta liturgia foi tão radicalmente suprimida que pouco se sabe acerca dela.

Em contrapartida, conservaram-se quase todos os antigos textos hispânicos e as respectivas melodias, mas numa notação que até hoje desafiou todas as tentativas de transcrição, pois o seu sistema tornou-se obsoleto antes de o canto passar a ser registado em linhas de pauta. Os usos hispânicos tomaram forma definida no Concílio de Toledo de 633, e após a conquista muçulmana do século VIII esta liturgia recebeu o seu nome de moçárabe, embora não haja motivos para pressupor influência árabe na música. O rito hispânico só em 1071 foi oficialmente substituído pelo rito romano, e ainda hoje subsistem dele alguns vestígios em certas igrejas de Toledo, Salamanca e Valladolid. Descobriram-se afinidades musicais entre os ofertórios ambrosianos e gregorianos e a categoria correspondente em Espanha, denominada sacrificia.

O canto romano antigo é um repertório que subsiste em manuscritos de Roma com datas que vão do século XI ao século XIII, mas cujas origens remontam pelo menos ao século VIII. Julga-se que esta liturgia representaria um uso mais antigo, que terá persistido e continuado a desenvolver-se em Roma mesmo depois de o repertório gregoriano, fortemente impregnado de influências do Norte, do país dos Francos, se ter difundido pela Europa. O reino franco, fundado por Carlos Magno (742-814), ocupava a zona que hoje corresponde a França, a Suíça e a parte ocidental da Alemanha.




Quais foram então as melodias trazidas de Roma para terras francas? Ninguém pode responder com segurança a esta pergunta. Os tons da recitação, os tons dos salmos, e alguns dos outros géneros mais simples eram muito antigos e poderão ter sido preservados praticamente intactos desde os tempos mais remotos; cerca de trinta ou quarenta melodias de antífona poderão ter tido origem na época de S. Gregório e boa parte das melodias mais completas — tractos, graduais, ofertórios, aleluias — deverão ter sido usadas (talvez em versões mais simples) em Roma antes de se difundirem para norte; além disso, é possível que algumas das melodias mais antigas se tenham conservado nos manuscritos do canto romano antigo. Seja como for, podemos deduzir que no seu novo local de acolhimento grande parte, se não a totalidade, desta música importada terá sofrido modificações antes de, finalmente, ser registada sob a forma em que hoje a encontramos nos mais antigos manuscritos do Norte. Além disso, muitas novas melodias e novas formas de cantochão desenvolveram-se no Norte já depois do século IX. Em suma, praticamente todo o corpo do cantochão, tal como hoje o conhecemos, provém de fontes francas, que, provavelmente, se basearam em versões romanas, com acrescentos e correcções da responsabilidade dos escribas e músicos locais.

Uma vez que a maioria dos manuscritos transmitem um repertório e uma versão do cantochão compilada e corrigida no reino franco, os estudiosos foram levados a crer que boa parte do cantochão foi composto e tomou a forma definitiva nos centros religiosos do Norte. No entanto, comparações recentemente efectuadas entre as versões franca e romana antiga vieram reforçar a convicção de que a romana antiga representa o fundo original, que apenas terá sofrido ligeiras alterações ao ser acolhido na Gália. O cantochão conservado nos mais importantes manuscritos francos, nesta perspectiva, transmite o repertório tal como terá sido reorganizado sob a orientação do papa Gregório (590-604) e de um seu importante sucessor, o papa Vitaliano (657-672). Em virtude do papel que Gregório I terá supostamente desempenhado neste processo, tal repertório recebeu o nome de gregoriano. Depois de Carlos Magno ter sido coroado em 800 como chefe do Sacro Império Romano, ele próprio e os seus sucessores procuraram impor este repertório gregoriano e suprimir os diversos dialectos do cantochão, como o céltico, o galicano, o moçárabe, o ambrosiano, mas não conseguiram eliminar por completo os usos locais. Os monges da abadia beneditina de Solesmes, em França, organizaram nos séculos XIX e XX edições fac-similadas e comentadas das fontes do canto gregoriano na série Paléografphie musicale. Lançaram também edições modernas do cantochão em notação neumática, coligindo-o em volumes separados para cada categoria de canto; em 1903 o papa Pio X conferiu a esta obra o estatuto de edição oficial do Vaticano. Com a promoção da missa em língua vernácula pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), estes livros passaram a ser muito pouco usados nos serviços religiosos modernos e deixaram de ser regularmente reeditados.

O mais importante centro da igreja ocidental a seguir a Roma era Milão, cidade florescente ligada a Bizâncio e ao Oriente por laços culturais muito fortes; foi a residência principal dos imperadores do Ocidente no século IV e mais tarde veio a ser a capital do reino lombardo, no Norte da Itália, que teve a sua época de florescimento entre 568 e 744. De 374 a 397 foi bispo de Milão Santo Ambrósio, a quem se deve a introdução da salmodia em responsório no Ocidente. O papa Celestino I incorporou-a mais tarde na missa em Roma. Dada a importância de Milão e a energia e grande reputação pessoal de Santo Ambrósio, a liturgia e a música milanesas exerceram uma forte influência não só em França e Espanha, mas também em Roma. Os cânticos do rito milanês vieram mais tarde a ser reconhecidos por canto ambrosiano, embora seja duvidoso que alguma da música que chegou até nós date do tempo do próprio Santo Ambrósio. A liturgia ambrosiana, com o seu corpo completo de cânticos, manteve-se, em certa medida, em Milão até aos dias de hoje, apesar de ter havido várias tentativas para a suprimir. Muitos dos cânticos, na sua forma actual, são semelhantes aos da igreja de Roma, indicando, quer um intercâmbio, quer uma evolução, a partir de uma fonte comum. Nos casos em que há duas versões da mesma melodia, quando esta é de tipo ornamentado (como, por exemplo, um aleluia), a ambrosiana é, geralmente, mais elaborada do que a romana; nas de tipo mais despojado (como um salmo), a ambrosiana é mais simples do que a romana.


A PREEMINÊNCIA DE ROMA — Como capital imperial, a Roma dos primeiros séculos da nossa era albergou um grande número de cristãos, que se reuniam e celebravam os seus ritos em segredo. Em 313 o imperador Constantino concedeu aos cristãos os mesmos direitos e a mesma protecção que aos praticantes das outras religiões do império; desde logo a Igreja emergiu da sua vida subterrânea e no decurso do século IV o latim substituiu o grego como língua oficial da liturgia em Roma. À medida que declinava o pretígio do imperador romano, o do bispo de Roma ia aumentando, e começou gradualmente a ser reconhecida a autoridade preeminente de Roma em questões de fé e disciplina.

Com um número crescente de convertidos e riquezas cada vez mais avultadas, a Igreja começou a construir grandes basílicas, e os serviços deixaram de poder realizar-se de forma relativamente informal, como se celebravam nos primeiros tempos. Entre o século V e o século VII muitos papas se empenharam na revisão da liturgia e da música. A Regra de S. Bento (c. 520), conjunto de instruções determinando a forma de organizar um mosteiro, menciona um chantre, mas não indica quais eram os seus deveres. Nos séculos seguintes, porém, o chantre monástico tornou-se uma figura-chave do panorama musical, uma vez que era responsável pela organização da biblioteca e do scriptorium e orientava a celebração da liturgia. No século VIII existia já em Roma uma schola cantorum, um grupo bem definido de cantores e professores incumbidos de formar rapazes e homens para músicos de igreja. No século VI existia um coro, e atribui-se a Gregório I (Gregório Magno), papa de 590 a 604, um esforço de regulamentação e uniformização dos cânticos litúrgicos. As realizações de Gregório foram objecto de tal admiração que em meados do século IX começou a tomar forma uma lenda segundo a qual teria sido ele próprio, sob inspiração divina, quem compusera todas as melodias usadas pela Igreja. A sua contribuição real, embora provavelmente muito importante, foi sem dúvida menor do que aquilo que a tradição medieval veio posteriormente a imputar-lhe. Atribuem-se-lhe a recodificação da liturgia e a reorganização da schola cantorum; a designação de determinadas partes da liturgia para os vários serviços religiosos ao longo do ano, segundo uma ordem que permaneceu quase inalterada até ao século XVI; além disto, teria sido ele o impulsionador do movimento que levou a adopção de um repertório uniforme de cânticos em toda a cristandade. Uma obra tão grandiosa e tão vasta não poderia, como é evidente, ter sido realizada em apenas catorze anos.

Os cânticos da igreja romana são um dos grandes tesouros da civilização ocidental. Tal como a arquitectura românica, erguem-se como um autêntico monumento a fé religiosa do homem medieval e foram a fonte e a inspiração de boa parte do conjunto da música ocidental até ao século XVI. Constituem um dos mais antigos repertórios vocais ainda em uso no mundo inteiro e incluem algumas das mais notáveis realizações melódicas de todos os tempos. Ainda assim, seria um erro considerá-los puramente como música para ser ouvida, pois não é possível separá-los do seu contexto e do seu propósito litúrgicos.



A manuscript page in the Beneventan notational genre, single line

[Benevento (Italy), Biblioteca capitolare, MS 21 f. 235v]



OS PADRES DA IGREJA — Esta perspectiva está em sintonia com a convicção dos Padres da Igreja de que o valor da música residia no seu poder de elevar a alma à contemplação das coisas divinas. Eles acreditavam firmemente que a música podia influenciar, para melhor ou para pior, o carácter de quem a ouvia. Os filósofos e os homens da Igreja da alta Idade Média não desenvolveram nunca a ideia — que nos nossos dias temos por evidente — de que a música podia ser ouvida tendo apenas em vista o gozo estético, o prazer que proporciona a combinação de belos sons. Não negavam, é claro, que o som da música é agradável, mas defendiam que todos os prazeres devem ser julgados segundo o princípio platónico de que as coisas belas existem para nos lembrarem a beleza perfeita e divina; por conseguinte, as belezas aparentes do mundo que apenas inspiram o deleite egoísta, ou o desejo de posse, devem ser rejeitadas. Esta atitude está na origem de muitas das afirmações sobre a música que encontramos nos escritos dos Padres da Igreja (e, mais tarde, nos de alguns teólogos da reforma protestante).

Mais especificamente, a sua filosofia determinava que a música fosse serva da religião. Só é digna de ser ouvida na igreja a música que por meio dos seus encantos abre a alma aos ensinamentos cristãos e a predispõe para pensamentos santos. Uma vez que não acreditavam que a música sem letra pudesse produzir tais efeitos, excluíram, a princípio, a música instrumental do culto público, embora fosse permitido aos fiéis usar uma lira para acompanharem o canto dos hinos e dos salmos em suas casas e em reuniões informais. Neste ponto os Padres da Igreja debatiam-se com algumas dificuldades, pois o Antigo Testamento, especialmente o Livro dos Salmos, está cheio de referências ao saltério, a harpa, ao órgão e a outros instrumentos musicais. Como explicar estas alusões? O recurso habitual era a alegoria: "A língua é o 'saltério' do Senhor [...] por 'harpa' devemos entender a boca, que o Espírito Santo, qual plectro, faz vibrar [...] o 'órgão' é o nosso corpo [...]" Estas e muitas outras explicações da mesma ordem eram típicas de uma época que se comprazia em alegorizar as Escrituras.

A exclusão de certos tipos de música dos serviços religiosos da igreja primitiva tinha também motivos práticos. As peças vocais mais elaboradas, os grandes coros, os instrumentos e a dança associavam-se no espírito dos convertidos, mercê de uma tradição de longa data, aos espectáculos pagãos. Enquanto a sensação de prazer ligada a tais tipos de música não pôde, por assim dizer, ser transferida do teatro e da praça do mercado para a igreja, essa música foi objecto de uma grande desconfiança; antes "ser surdo ao som dos instrumentos" do que entregar-se a esses "coros diabólicos", a essas "canções lascivas e perniciosas". "Pois não seria absurdo que aqueles que ouviram a voz mística do querubim dos céus expusessem os seus ouvidos às canções dissolutas e às melodias alambicadas do teatro?" Mas Deus, apiedando-se da fraqueza humana, "juntou aos preceitos da religião a doçura da melodia [...] as melodias harmoniosas dos salmos foram introduzidas para que aqueles que são ainda crianças estejam, afinal, a formar as suas almas, mesmo quando julgam estar apenas a cantar a música[3]".

"Há quem diga que enfeiticei as pessoas com as melodias dos meus hinos", dizia Santo Ambrósio, acrescentando com orgulho, "e não o nego[4]." Havia certamente na Igreja quem desprezasse a música e tendesse a considerar toda a arte e a cultura como inimigas da religião, mas havia também homens que não só defendiam a arte e a literatura pagãs, como eles próprios, tão profundamente sensíveis a sua beleza, chegavam a recear o prazer que sentiam ao ouvirem música, mesmo na igreja. As célebres palavras de Santo Agostinho exprimem este dilema (v. vinheta).

Em 387 d. C. Santo Agostinho começou a escrever um tratado, Da Música, de que completou seis livros. Os cinco primeiros, após uma breve definição introdutória da música, tratam dos princípios da métrica e do ritmo. O sexto, revisto por volta de 409, aborda a psicologia, a ética e a estética da música e do ritmo. Santo Agostinho projectara inicialmente outros seis livros consagrados a melodia.

O conflito entre o sagrado e o profano na arte não é exclusivo da Idade Média. Sempre foi objecto de consenso geral a ideia de que certos tipos de música, por este ou aquele motivo, não são próprios para serem ouvidos na igreja. As diversas igrejas, as diversas comunidades, as diversas épocas, traçaram a fronteira em pontos diferentes, se bem que esse limite nem sempre seja nítido. O motivo por que nos primeiros tempos do cristianismo ele foi por vezes fixado tão próximo do ascetismo mais extremo prende-se com a situação histórica. A Igreja, nos seus começos, era um grupo minoritário a braços com a tarefa de converter toda a população da Europa ao cristianismo. Para o fazer tinha de instaurar uma comunidade cristã claramente separada da sociedade pagã que a rodeava e organizada por forma a proclamar, por todos os meios possíveis, a urgência de subordinar todas as coisas deste mundo ao bem-estar eterno da alma. Assim, na opinião de muita gente, qual exército avançando para o campo de batalha, não podia dar-se ao luxo de levar consigo um excesso de bagagem sob a forma de música que não fosse estritamente indispensável a sua missão. Na grande metáfora de Toynbee, a Igreja era "a crisálida donde saiu a nossa sociedade ocidental". A sua "semente de poder criador"[5] no domínio da música teve por encarnação o canto gregoriano. Os missionários cristãos que percorriam as antigas estradas romanas no início da Idade Média levaram estas melodias a todas as regiões da Europa ocidental. Elas foram uma das fontes que, com o passar do tempo, vieram a dar origem à música ocidental.




SANTO AGOSTINHO, Confissões, ACERCA DOS PRAZERES E PERIGOS DA MÚSICA

Quando me lembro das lágrimas derramadas ao ouvir os cânticos da vossa igreja nos primórdios da minha conversão à fé, e ao sentir-me agora atraído, não pela música, mas pelas letras dessas melodias, cantadas em voz límpida e modulação apropriada, reconheço, de novo, a grande utilidade deste costume. Assim flutuo entre o perigo do prazer e os salutares benefícios que a experiência nos mostra. Portanto, sem proferir uma sentença irrevogável, inclino-me a aprovar o costume de cantar na igreja para que, pelos deleites do ouvido, o espírito, demasiado fraco, se eleve até aos afectos da piedade. Quando, às vezes, a música me sensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso, com dor, que pequei. Nestes casos, por castigo, preferia não ouvir cantar. Eis em que estado me encontro. Chorai comigo, chorai por mim, vós que praticais o bem no vosso interior, donde nascem as boas acções. Estas coisas, Senhor, não Vos podem impressionar, porque não as sentis. Porém, ó meu Senhor e meu Deus, olhai por mim, ouvi-me, vede-me, compadecei-vos de mim e curai-me. Sob o Vosso olhar transformei-me, para mim mesmo, num enigma que é a minha própria enfermidade.

Santo Agostinho, Confissões, x, cap. 33, trad. de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, Livraria Apostolado da Imprensa, 6ª ed., 1958, p. 278.





BOÉCIO — A teoria e a filosofia da música do mundo antigo — ou aquilo que delas continuava acessível após a queda do Império Romano e as invasões bárbaras — foram sendo coligidas, resumidas, modificadas e transmitidas ao Ocidente ao longo dos primeiros séculos da era cristã. Os autores que mais se assinalaram neste processo foram Martianus Cappella, com o seu tratado enciclopédico intitulado As Núpcias de Mercúrio e da Filologia (princípio do século V) e Anicius Manlius Severinus Boetius (c. 480-524), com a sua De institutione musica (princípio do século VI).

A obra de Martianus era essencialmente um manual sobre as sete artes liberais: gramática, dialéctica, retórica, geometria, aritmética e harmonia, por esta ordem. As primeiras três — as artes da palavra — vieram a ser agrupadas sob o nome de trivium (o triplo caminho), enquanto as quatro últimas receberam de Boécio a designação de quadrivium (o quádruplo caminho) e constituíam as artes matemáticas.



Retratos fantasiosos de Boécio e Pitágoras e, em baixo, Platão e Nicômaco.
Boécio é representado a determinar a medida das notas num monocórdio.
Pitágoras toca campainhas com um de entre vários martelos.
Platão e Nicômaco,
dois autores gregos, são retratados como autoridades consagradas no domínio da música.



Martianus recorreu ao artifício de apresentar as suas introduções a estes temas como discursos das damas de honor no casamento de Mercúrio com Filologia. A parte consagrada a harmonia baseia-se, em grande medida, no autor grego ecléctico do século IV Aristides Quintiliano, que, por seu turno, foi buscar as suas concepções teóricas a Aristóxeno, embora introduzindo na sua exposição ideias neoplatónicas.

Boécio foi a autoridade mais respeitada e mais influente na Idade Média no domínio da música. O seu tratado, escrito nos primeiros anos do século VI, ainda na juventude do autor, era um compêndio de música enquadrado no esquema do quadrivium, servindo, por conseguinte, como as restantes disciplinas matemáticas, de preparação para o estudo da filosofia. Pouca coisa neste tratado era fruto do próprio Boécio, pois tratava-se de uma compilação das fontes gregas de que dispunha, com especial destaque para um longo tratado de Nicómaco, que não subsistiu até aos nossos dias, e para o primeiro livro da Harmonia de Ptolemeu. Boécio redigiu manuais similares para a aritmética (que sobreviveu, completo, até a actualidade) e para a geometria e a astronomia, que desapareceram. Traduziu também do grego para o latim os quatro tratados de Aristóteles sobre lógica, que, no conjunto, são conhecidos por Organum. Embora os leitores medievais possam não se ter apercebido da dependência de Boécio em relação a outros autores, compreenderam que a autoridade da teoria musical e da matemática gregas estava naquilo que Boécio dizia sobre estes temas. Não os afligiam muito as contradições do De institutione musica, cujos primeiros três livros eram decididamente pitagóricos, enquanto o quarto continha elementos provenientes de Euclides e Aristóxeno e o quinto, baseado em Ptolemeu, era parcialmente antipitagórico. A mensagem que a maioria dos leitores apreendiam era que a música era uma ciência do número e que os quocientes numéricos determinavam os intervalos admitidos na melodia, as consonâncias, a composição das escalas e a afinação dos instrumentos e das vozes. Na parte mais original do livro, os capítulos de abertura, Boécio divide a música em três géneros: música mundana ("música cósmica"), as relações numéricas fixas observáveis no movimento dos planetas, na sucessão das estações e nos elementos, ou seja, a harmonia no macrocosmos; música humana, a que determina a união do corpo e da alma e das respectivas partes, o microcosmos, e música instrumental, ou música audível produzida por instrumentos, incluindo a voz humana, a qual ilustra os mesmos princípios de ordem, especialmente nos quocientes numéricos dos intervalos musicais. A imagem dos cosmos que Boécio e os outros escritores antigos delinearam nas suas dissertações sobre a música mundana e a música humana veio a reflectir-se na arte e na literatura da Idade Média mais tardia, nomeadamente na estrutura do "Paraíso" no último canto da Divina Comédia de Dante. Vestígios da doutrina da música humana persistiram ao longo de todo o Renascimento e mesmo até aos nossos dias sob a forma da astrologia.



Boécio sublinhou também a influÊncia da música no carácter e na moral. Em virtude disso, confere a música um papel importante, por direito próprio, na educação dos jovens, considerando-se ainda como uma introdução aos estudos filosóficos mais avançados.

Ao colocar a música instrumental — a música tal como hoje a entendemos — em terceiro lugar, tomando-a, presumivelmente, como a categoria menos importante, Boécio mostrava bem que, a exemplo dos seus mentores, concebia a música mais como um objecto de conhecimento do que como uma arte criadora ou uma forma de expressão de sentimentos. A música, diz ele, é a disciplina que se ocupa a examinar minuciosamente a diversidade dos sons agudos e graves por meio da razão e dos sentidos. Por conseguinte, o verdadeiro músico não é o cantor ou aquele que faz canções por instinto sem conhecer o sentido daquilo que faz, mas o filósofo, o crítico, aquele "que apresenta a faculdade de formular juízos, segundo a especulação ou razão apropriadas à música, acerca dos modos e ritmos, do género das canções, das consonâncias, de todas as coisas" respeitantes ao assunto[6].


Notas:


[1] Plínio, Cartas, 10, 96.


[2] Os nove cânticos bíblicos, textos líricos semelhantes aos salmos, mas não incluídos no Livro dos Salmos, são os seguintes: (1) cântico de Moisés depois da passagem do mar Vermelho, Êxodo, 15, 1-19; (2) cântico de Moisés antes de morrer, Deuteronômio, 32, 1-43; (3) cântico de Hannah, 1 Samuel, 2, 1-10; (4) cântico de Habacuc, 3, 2-19; (5) cântico de Isaías, Isaías, 26, 9-19; (6) cântico de Jonas, Jonas, 2, 3-10; (7) cântico das Três Crianças, primeira parte, Evangelhos Apócri-fos, Daniel, 3, 26-45, 52-56; (8) segunda parte do mesmo, ibid., 57-88; (9) cântico da abençoada Vir-gem Maria, Magnificat, Lucas, 1, 46-55; (10) segunda parte do mesmo, Benedictus Dominus, Lucas, 1, 68-79. Na igreja bizantina todos estes nove cânticos eram cantados no ofício da manhã, exceto na Quaresma, em que só se cantavam três. A igreja romana tinha um cântico do Antigo Testamento por dia, às laudas, e os três cânticos do Novo Testamento (Lucas, 1, 46-45, 1, 68-74, e 2, 24-32) às laudas, vésperas e completas de todos os dias.


[3] S. Jerônimo, S. Basílio, S. João Crisóstomo, in Théodore Gerold, Lês Peres de l’Église, Paris, 1931, pp. 86, 92 e 94-96; para uma lista de citações suplementares sobre estes assuntos, v. Hermann Abert, Die Musikanschauung des Mettelalters, Halle, 1905, p. 77, nota 1.


[4] Migne, Patrologiae, 1, 16, 1017.


[5] Arnold J. Toynbee, Study of History, 10 vols., Londres, 1935-1939, 1, 57-58.


[6] Boécio, De Institutione musica, 1.34.



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Bibliografia

Fontes

São apresentadas transcrições de todas as melodias e fragmentos gregos conhecidos em Egert Pohlmann, DenkmSler altgriechischer Fragmente und FSlschungen, Nuremberga, Carl, 1970.

A maioria dos textos gregos referidos neste capítulo existem em tradução inglesa. Strunk inclui uma selecção cuidada de excertos de Aristóteles, Platão, Aristóxeno e Cleónides no cap. 1 de Source Readings in Music History, Nova Iorque, Norton, 1950, pp. 3-4. Andrew Barker (ed.), Greek Musical Writings, i, The Musician and His Art, Cambridge, Cambridge University Press, 1984, contém textos de poetas, dramaturgos e filósofos, incluindo uma nova tradução da obra do Pseudo-Plutarco, Da Música.

Podem ainda ser consultadas as seguintes traduções: Aristóxeno, The Harmonics of Aristoxenus, trad., notas e introd. de Henry S. Macran, Oxford, Clarendon Press, 1902; Euclides, Sectio canonis, trad. de J. Mathiesen, "An annotated translation of Euclid's division of a monochord", JMT, 19.2, 1975, 236-258; Sextus Empiricus, Against the Musicians, trad. e notas de Denise Davidson Greaves, Lincoln e Londres, University of Nebraska Press, 1986; Aristides Quintiliano, On Music in Three Books, trad., com introd., comentários e notas, de Thomas J. Mathiesen, New Haven, Yale University Press, 1983; Bacchius Senior, trad. de Otto Steinmayer, "Bacchius Geron's Introduction to the Art of Music", JMT, 29.2, 1985, 271-298; Martianus Cappella, De nuptiis Philologiae et Mercurii, trad. in Willian Harris Stahl et. al., Martianus Cappella and the Seven Liberal Arts, Nova Iorque, Columbia University Press, 1971; Boécio, Fundamentals of Music (De institutione musica libri quinque), trad., com introd. e notas, de Calvin M. Bower, ed. Claude V. Palisca, New Haven, Yale University Press, 1989.



Leitura aprofundada

MÚSICA GREGA

Os estudos mais completos são o capítulo da autoria de Isobel Henderson, "Ancient Greek music", NOHM, vol. 1, e Edward Lippman, Musical Thought in Ancient Greece, Nova Iorque, Columbia University Press, 1964; v. também Reginald P. Winnington-Ingram, "Greece, I", in NG, para as questões relativas a história, aos instrumentos, a teoria e a prática, e Thomas J. Mathiesen, A Bibliography of Sources for the Study of Ancient Greek Music, Hackensack, NJ, Boonin, 1974.

Sobre os fragmentos de música grega recentemente descobertos, v. Thomas J. Mathiesen, "New fragments of ancient Greek music", AM, 53, 1981, 14-32.

Para a questão do etos, v. Warren De Witt Anderson, Ethos and Education in Greek Music, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1966, e Thomas J. Mathiesen, "Harmonia and ethos in ancient Greek music", JM, 3, 1984, 264-279.

Para uma análise mais aprofundada da teoria grega, v. Richard Crocker, "Pythagorean mathematics and music", in Journal of Aesthetics and Art Criticism, 22, 1963-1964, 189-198 e 325-335, Reginald P. Winnington-Ingram, Mode in Ancient Greek Music, Cambridge, Cambridge University Press, 1984, John Solomon, "Toward a history of the tonoi", JM, 3, 1984, 242-251, e André Barbera, "Octave species", ibid., 229-241.

Sobre outros textos gregos acerca da música, v. Andrew Barker (ed.), Greek Musical Wri-tings, que inclui igualmente uma descrição dos instrumentos musicais gregos na introdução.

Sobre a Oresteia e a sua estrutura dramática e musical, v. William C. Scott, Musical Design in Aeschylean Theatre, Hanover, NH, University Press of New England, 1984; sobre o papel do coro grego, v. Warren Anderson, "'What songs the sirene sang': problems and conjectures in ancient Greek music", in Royal Music Association Research Chronicle, 15, 1979, 1-16.

MÚSICA HEBRAICA

Sobre a música hebraica, v. A. Z. Idelsohn, Jewish Music in Its Historical Development, Nova Iorque, Schocken, 1967.

Para um resumo dos estudos e das perspectivas mais recentes acerca das relações entre a música judaica e a música da igreja cristã primitiva, v. James W. Mckinnon, "The question of psalmody in the ancient synagogue", EMH, 6, 1986, 159-191.

MÚSICA BIZANTINA

V. Oliver Strunk, Essays on Music in the Byzantine World, Nova Iorque, Norton, 1977, e Egon Wellesz, A History of Byzantine Music and Hymnody, 2.a ed., Oxford, Clarendon, 1971, e Eastern Elements in Western Chant, Oxford, Byzantine Institute, 1947.

Sobre a iconografia bizantina, v. Joachim Braun, "Musical instruments in Byzantine illuminated manuscripts", EM, 8, 1980, 312-327.

LITURGIA OCIDENTAL

Para o estudo da missa e do ofício, v. Cheslyn Jones, Geoffrey Wainwright e Edward Yarnold, SJ, The Study of Liturgy, Nova Iorque, Oxford University Press, 1978; sobre o canto benaventino, v. Thomas Forrest Kelley, "Montecassino and the old Beneventan chant", EMH, 5, 1985, 53-83.

Sobre as origens do canto gregoriano e a lenda de S. Gregório, v. Leo Treitler, "Homer and Gregory: the transmission of epic poetry and plainchant", MQ, 55, 1974, 333-372, e GLHWM, 1, e "'Centonate' chant: Übles Flickwerk or E pluribus unum?", JAMS, 28, 1975, 1-23, Willi Apel, "The central problem of Gregorian chant", JAMS, 9, 1956, 118-127, Paul Cutter, "The question of 'old Roman chant': a reappraisal", AM, 39, 1967, 2-20, e Helmut Hucke, "Toward a new historical view of Gregorian chant", JAMS, 33, 1980, 437-467. Os três últimos artigos reflectem a controvérsia sobre as origens do canto gregoriano, que vem também resumida em Andrew Hughues, Medieval Music: the Sixth Liberal Art, Toronto, Univesity of Toronto Press, 1980, secções 605 e segs.

Kenneth Levy, "Toledo, Rome and the legacy of gaul", EMH, 4, 1984, 49-99, e "Charlemagne's archetype of Gregorian chant", JAMS, 40, 1987, 1-30, apresenta uma nova data para o registo por escrito do canto gregoriano (c. 900) e uma nova perspectiva acerca da "supressão" do galicano.

Sobre o papel do cantor, v. Margot E. Fassler, "The office of the cantor in early western monastic rules and costumaries: a preliminary investigation", EMH, 5, 1985, 29-51.

Sobre Boécio, v. Calvin M. Bower, "Boethius and Nicomachus: an essay concerning the sources of De institutione musica", Vivarium, 16, 1978, 1-45.

Sobre a música no âmbito do trivium e do quadrivium, v. E. A Lippman, "The place of music in the system of liberal arts", in Jan LaRue (ed.), Aspects of Medieval and Renaissance Music: a Birthday Offering to Gustave Reese, Nova Iorque, Norton, 1966, pp. 545-559.

V. também J. W. McKinon (ed.), Music in Early Christian Literature, Cambridge, Cambridge University Press, 1987, e M. E. Fassler, "Accent, meter and rhythm in medieval treatises 'De rithmis'", JM, 5, 1987, 164-190.


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quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Norton Recorded Anthology of Western Music - volume 2, CD8





NORTON RECORDED ANTHOLOGY OF WESTERN MUSIC.


Classic to Modern. 4ed.


by Claude V Palisca



Volume 2 - CD 8



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segunda-feira, 15 de setembro de 2008

A musica mensurata e a construção da temporalidade moderna

(medieval clock tower of Sighisoara)




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Do tempo analógico ao tempo abstrato: a musica mensurata e a construção da temporalidade moderna



Maya Suemi Lemos



(Maya Suemi Lemos é doutoranda em História da Música e Musicologia e membro doCentre de Recherches sur le Langage Musical (CRLM) da Université de Paris IV — Sorbonne)




Resumo


No final do século XII começa a delinear-se, na sociedade urbana ocidental, o processo de transformação da consciência do tempo que opera a transição de uma temporalidade medieval a uma temporalidade moderna. Relacionado à emergência de uma mentalidade aritmética, esse processo se insere num contexto amplo de racionalização e especulação que afeta igualmente a música. De fato, o processo de transição da música não-mensurável à música mensurável é análogo àquele que conduz do tempo medieval ao tempo moderno dos relógios mecânicos. Ele é assim revelador do movimento de idéias e de estruturas mentais de representação que leva à transformação da temporalidade.

Palavras-chave: tempo, música e sociedade, história medieval, notação musical.



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O relógio mecânico não é então telúrico nem cósmico.
É uma terceira criação, uma obra do pensamento, que
não indica o tempo dos astros nem o da terra. Ele tem o
dom do tempo abstrato, intelectual. Não de um tempo
que se oferece como a luz do sol e dos elementos, mas
de um tempo que o homem constrói e assume.

(Ernst Jünger, Das Sanduhrbuch, 1954)





Numa extensa genealogia que se inicia com os escritos pioneiros de Bilfinger (1892) e passa pelos estudos de Sombart (1992), Needham (1965), Mumford (1950), Landes (1987), Le Goff (1977) e Pomian (1984) — para citar apenas alguns dos principais nomes —, a historiografia vem tentando descrever há mais de um século, não sem obstáculos e discordâncias, o processo de transformação da consciência do tempo na sociedade urbana medieval ocidental, que, articulado e simbolizado pelo aparecimento do relógio mecânico, opera a transição de uma temporalidade medieval a uma temporalidade moderna.


Se a data da aparição dos primeiros relógios mecânicos é objeto de controvérsia (1), podendo ser estimada, segundo cada autor, de c. 1260 a c. 1330, todos são unânimes, no entanto, em atribuir uma importância fundamental, no processo de transformação da temporalidade, ao surgimento deste instrumento. E isto tanto do ponto de vista de seu princípio de funcionamento, que viabiliza a contagem moderna das horas, quanto daquilo que ele simboliza em termos sociais: o estabelecimento de uma nova ordem política, cultural e econômica, laicizada e citadina. De fato, Bilfinger já advertia que a história da evolução das técnicas não seria suficiente para explicar a passagem do tempo medieval ao tempo moderno. Era preciso interrogar a história social e cultural. A sua intuição apontava para a sociedade urbana como o meio onde surge a necessidade dessa transição e que ao mesmo tempo a impulsiona. Le Goff (1977: 48), seguindo essa linhagem, nos mostra que é nesse processo, segundo ele um dos maiores eventos da história das mentalidades, que é elaborada a ideologia do mundo moderno, impulsionada pela transformação das estruturas e das práticas econômicas. Pois é no contexto da indústria urbana que se imporá a necessidade de uma medida mais precisa do tempo que regule a duração da jornada de trabalho: a burguesia têxtil, numa conjuntura de ascensão social, obterá permissões para instalar sinos e, mais tarde, relógios mecânicos no alto das torres citadinas com a finalidade de sinalizar os períodos de trabalho (2). Ela se apropria assim de um tempo até então marcado e regulado pelo ciclo natural do dia e pelas horas canônicas das igrejas e mosteiros. Esse novo tempo laicizado — tempo do trabalho (3) — se afirmará pouco a pouco, reflexo e expressão de uma nova sociedade e de uma nova economia que vem substituir uma economia medieval cadenciada pelos ritmos agrários, "isenta de pressa, sem preocupação com a exatidão, sem imperativos de produtividade", à imagem de uma sociedade ainda "sem grandes apetites, pouco exigente, pouco capaz de esforços quantitativos" (Le Goff, 1977: 68).


Esse processo de transformação da temporalidade pode ser compreendido, numa outra perspectiva, dentro de um contexto amplo de racionalização e especulação que começa a se afirmar no fim do século XII e culmina nos monumentos escolásticos do século XIII. Trata-se da "emergência de uma mentalidade aritmética", de uma "invasão do número"(4), que afeta o mundo do mercado, sem dúvida, mas também a universidade. A música, disciplina prática por um lado, mas pertencente então ao quadrivium e, como tal, investida de um status de scientia, participa também desse movimento. Considerada expressão última do número, das relações numéricas (harmonia), mas além disso, por sua natureza intrínseca, fenômeno necessariamente temporal, ela se encontra implicada em toda reflexão sobre o tempo e sua medida. De fato, a uma modernização do tempo corresponde, como veremos, uma modernização do tempo musical, materializada na música dita mensurável e sistematizada através de um esforço prodigioso de abstração e objetivação do qual participam não apenas músicos, mas também teóricos ligados à universidade. O processo de transição da música não-mensurável à música mensurável é análogo, sob inúmeros pontos de vista, àquele que conduz do tempo medieval ao tempo moderno dos relógios mecânicos. Ele é assim revelador do movimento de idéias e de estruturas mentais de representação que leva à transformação da temporalidade. Examinando aqui as principais etapas desse processo, mesmo que de maneira sumária, pretendemos mostrar que o estudo da evolução da música e da notação musical, particularmente dinâmica nesse período, pode contribuir para uma compreensão cada vez mais abrangente de um momento crucial de transformação das mentalidades no Ocidente.



Relógio mecânico e racionalização do tempo


Foi o desenvolvimento do sistema de escape, derivado do mecanismo dos horologia nocturna ou excitatoria (5) monásticos, que, de um ponto de vista técnico, permitiu a aparição dos primeiros relógios mecânicos no século XIII. Antes ainda da segunda metade do século XIV, boa parte dos grandes centros urbanos da Europa ocidental já ostentava no alto de suas torres um exemplar dessa nova meraviglia. E era bem de uma maravilha, de um gadget, que parecia tratar-se então: ainda frágeis e imprecisos nesses primórdios (freqüentemente em pane e podendo necessitar de ajustes diários de até uma hora), sua função era mais ostentatória que utilitária (Le Goff, 1977: 66-79). A sua difusão representa, no entanto, uma mudança brusca e essencial no paradigma de medida do tempo: os relógios mecânicos inauguram um princípio que transformará definitivamente a maneira como o homem apreende e representa o tempo. Pois, em vez de mimetizar o fluxo do tempo tal como faziam o relógio solar e a clepsidra, o relógio mecânico o racionaliza, recortando o continuum temporal em um número mensurável de instantes regulares e abstratos. De uma representação analógica, mimética do tempo, passa-se assim a uma representação abstrata e objetivada.


A concepção de um tal tempo, fragmentado e quantificado em instantes, levará, é verdade, ainda alguns séculos para ser integrada definitivamente nas mentalidades — a divisão da hora em minutos e segundos não entrará no uso habitual antes do fim do século XVI (Dohrn-Van Rossum, 1997: 294). Porém, o batimento regular do relógio mecânico, mais do que introduzir a idéia de uma segmentação abstrata do tempo, vai implicar uma outra possibilidade, absolutamente nova e não sem grandes conseqüências: a de determinar horas iguais, independentes dos ciclos naturais. Pois, até então, as horas civis correspondiam às horas canônicas dos ofícios litúrgicos (6), calculadas de acordo com o ciclo solar (12 horas diurnas e 12 horas noturnas) e como tal desiguais, variando em sua duração segundo a estação do ano. O dia civil era cadenciado pela sinalização episódica dos ofícios litúrgicos, e era assim que, por exemplo, o Parlamento de Paris começava seus trabalhos junto com a primeira missa da Sainte-Chapelle e se dispersava depois do sino da nona; e que em Bruges o tribunal ouvia as causas até o meio-dia, e as apelações até as vésperas (Landes, 1987: 119). A aparição do relógio mecânico conduzirá à substituição dessa temporalidade elástica por uma temporalidade regular, baseada em horas iguais, objetivando o tempo e trazendo a possibilidade de uma sincronização temporal rigorosa das ações humanas.


A nova contagem das horas, divorciada do ritmo natural do dia e da noite, se imporá paulatinamente, anunciando a modernidade. Sinalizadas uma a uma ao longo do dia, as horas iguais passarão a ritmar a existência nos centros urbanos em pleno desenvolvimento. Associadas a um novo tempo do trabalho, elas marcam, como dissemos, a transferência do poder da Igreja, como organizadora da vida civil, às autoridades laicas e à burguesia manufatureira (ver Landes, 1987: 125-126).


Os mesmos fatores que regem a transformação da temporalidade civil acionam também a transformação da temporalidade musical. Veremos que a musica mensurata, expressão dessa transformação, é igualmente o resultado de um processo de racionalização do tempo; que este também passa a ser computado através de uma pulsação constante que obriga à substituição de uma rítmica antes flexível e irregular, permitindo conseqüentemente uma sincronização precisa dos eventos musicais; que a representação analógica do tempo musical também dará lugar a uma representação abstrata e numérica; e, finalmente, que essa transformação pode ser igualmente
identificada a um processo de laicização da cultura urbana, materializada no abandono das leis divinas e naturais como organizadoras do tempo.



Racionalização do tempo musical: a musica mensurata


Durante os primeiros séculos de nossa era a elaboração e a transmissão da música se fizeram oralmente, sem intervenção da escrita em nenhum de seus estágios. Isidoro de Sevilha dirá no início do século VII: "Os sons, se não forem guardados pelo homem em sua memória, desaparacerão, pois nada os pode reter" (Etimologias, 15, 2). Pois é somente a partir do século IX que as inflexões do canto eclesiástico começam a ser representadas através da escrita neumática, um sistema de signos derivados dos gestos que, sem ainda precisar a altura dos sons, indicam de maneira esquemática o movimento melódico (7). Os séculos seguintes vêem surgir diversos métodos de notação musical já capazes de descrever os sons em suas alturas e relações intervalares, primeiramente utilizando letras do alfabeto e depois incorporando uma pauta de uma ou mais linhas. Esse processo culmina, por volta do século XII, no sistema dos neumas ditos diastemáticos (8), que chegou até nós através de um repertório conseqüente de peças a uma ou duas vozes, preservado nos manuscritos provenientes da abadia de Saint-Martial de Limoges (9)e no Codex Calixtinus de Santiago de Compostela (c. 1150). Um tal estágio de evolução da escrita musical pressupõe o abandono, ao menos em parte, do sistema de elaboração e transmissão oral da música. Composição e escrita musical passam então a se interpenetrar, tornando-se dois aspectos inseparáveis de uma única atividade. Disto decorre, desde então, uma implicação direta dos métodos de notação nos mecanismos de criação musical. Conseqüentemente, entender a lógica da notação musical é entender de certa forma o pensamento que guia a criação musical a partir desse período.


Mas será preciso esperar a passagem para o século XIII para que o parâmetro do tempo, que nos interessa aqui, seja integrado de maneira objetiva na notação musical. Um sistema de notação da metade do século XII, como o do manuscrito abaixo, pode nos dar uma visão global do fluxo dos sons no tempo e da sincronia aproximada entre os sons de duas melodias, no caso de uma polifonia. Mas ele não nos informa nada sobre a duração de cada um dos sons, sobre as possíveis relações de tempo entre eles. Pois o ritmo do canto é ainda um reflexo da métrica e da prosódia do texto, tributário da fala e da declamação e, como tal, flexível, fluido e irregular.


[codex calixtinus]

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Notas
(1)
A escassez de fontes explícitas e a utilização equívoca do termo horologium, empregado nos textos medievais para designar tanto os relógios solares e hidráulicos quanto os relógios mecânicos, torna impossível nos dias de hoje uma datação segura.
(2)
Processo que implica evidentemente inúmeros e diversos conflitos sociais (ver Le Goff, 1977: 66-79).
(3)
Segundo formulação de Le Goff (1977).
(4)
Segundo as formulações de Murray (1978).
(5)
Instrumentos feitos de engrenagens que, sem indicar as horas nem funcionar continuamente como os relógios, emitem um sinal sonoro no momento programado, como um despertador. Utilizados nos mosteiros para regular os ofícios e atividades quotidianas (Landes, 1987).
(6)
A tradição cristã adotou durante toda a Idade Média a antiga divisão romana das horas — duas sequências de 12 horas temporais (ou desiguais), cada uma dela repartida em quatro seções principais, cujos limites são: o nascer e o pôr do sol (prima hora), a terça, a sexta, e a nona hora. As horas dos ofícios eram então distribuídas em função dessas quatro seções principais do dia e da noite (Dohrn-Van Rossum, 1997: 17-46).
(7)
O mundo greco-romano conhecera um tipo de notação musical baseado nas letras do alfabeto, descrito tardiamente por Boécio no século V. Essa forma de escrita musical cai porém em desuso, e a prática musical dos primeiros séculos da nossa era passa ao largo de toda representação gráfica do evento musical. A aparição da escrita neumática no século IX está provavelmente ligada à unificação da liturgia imposta por Pepino o Breve e por Carlos Magno. De fato, a difusão do rito romano, tomado então como modelo para todo o Império Carolíngio, implicava a assimilação rápida de um vasto repertório musical. Tornava-se assim necessário o desenvolvimento de um sistema mnemotécnico capaz de auxiliar nesse aprendizado (Hoppin, 1991 [1978]).
(8)
Neumas que explicitam a altura dos sons, contrariamente aos neumas mais primitivos, ditos quironômicos, in campo aperto ou não-diastemáticos, cuja escrita não fornece nenhuma indicação precisa da altura dos sons.
(9)
A atividade musical e literária desta abadia é intensa entre os séculos IX e XII e dá origem a um importante repertório tanto monódico quanto polifônico, a ponto de a musicologia hojereferir-se a uma "escola de Saint-Martial" (Ferrand, 1999).


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[leia o artigo completo aqui]


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sábado, 6 de setembro de 2008

Harmonia Mundi - História da Música vol.15


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Norton Recorded Anthology of Western Music - volume 2, CD7




NORTON RECORDED ANTHOLOGY OF WESTERN MUSIC.

Classic to Modern. 4ed.

by Claude V Palisca


Volume 2 - CD 7


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História da Música Ocidental - Capítulo 1, parte 1.2b. Epitáfio de Seikilos - Fragmento do Orestes de Eurípides





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Epitáfio de Seikilos — Stasimon do Orestes (fragmento)


Apesar das contradições e imprecisões que dificultam o trabalho do estudioso dos textos antigos sobre música, há uma correspondência assinalável entre os preceitos teóricos de Aristóxeno a Alípio e os fragmentos musicais que sobreviveram. Dois de entre estes prestam-se a ser estudados com algum pormenor: o epitáfio de Seikilos (NAWM 2) e um coro do Orestes de Eurípides (NAWM 1).

Ambos os exemplos ilustram até que ponto os escritos teóricos podem servir de guia para a compreensão dos recursos técnicos da música grega que subsistiu até aos nossos dias. Os sistemas tonais descritos na literatura parecem ter aplicação na música escrita e poderão ter sido igualmente fundamentais para a música mais corrente que não ficou registada por escrito. Entretanto, convém lembrar que, se Eurípides escreveu a música do fragmento do Orestes, fê-lo quase um século antes de Aristóxeno e de outros autores começarem a analisar o sistema de tons. Por conseguinte, não é de admirar que esse fragmento não se harmonize tão bem com a teoria. Se a canção de Seikilos está mais de acordo com a teoria, talvez seja porque a teoria orientou a sua composição.



NAWM 2 — Epitáfio de Seikilos

O epitáfio de Seikilos, embora seja o mais tardio dos dois exemplos, será examinado em primeiro lugar, uma vez que está completo e apresenta menos problemas analíticos. O texto e a música estão inscritos numa estela ou pedra funerária encontrada em Aidine, na Turquia, próximo de Trales, e datam, aproximadamente, do século I d. C. Todas as notas da oitava mi-mi', com Fá sustenidos e Dó sustenidos (v. exemplo 1.5), entram na canção, de forma que a espécie de oitava é inequivocamente identificável como aquela a que Cleónides deu o nome de frígia, equivalente a escala de Ré nas teclas brancas de um piano. A nota que mais se destaca é o lá, sendo as duas notas extremas mi e mi'. A nota lá é a mais frequente (oito vezes), e três das quatro frases começam com ela; mi' é a nota mais aguda das quatro frases e repete-se seis vezes; mi é a nota final da peça. De importância subsidiária são sol, que encerra duas das frases, mas é omitido no fim, e ré', que é a última nota de outra das frases.

A importância do lá é significativa, porque se trata da nota central, ou mese, do sistema perfeito completo. Em Problemas, obra atribuída a Aristóteles (mas que poderá não ser inteiramente da sua autoria), afirma-se o seguinte: "Em toda a boa música o mese repete-se com frequência, e todos os bons compositores recorrem frequentemente ao mese, e, se o deixam, é para em breve voltarem a ele, como não o fazem com mais nenhuma nota[1]."

A oitava mi-mi', com dois sustenidos, é um segmento da dupla oitava Si-si', identificada por Alípio como correspondendo ao tonos diatónico iástico, uma forma menor do modo frígio que é também conhecida pelo nome de tonos jónico (v. exemplo 1.5 e figura 1.1). Este tonos transpõe o sistema perfeito maior para um tom inteiro acima da sua localização natural, hipolídia, em Lá-lá', na notação de Alípio. A identidade do tonos, porém, não parece ser essencial a estrutura da peça, pois os tons que nela mais se destacam, lá e mi, funcionam nesse tonos como lichanos meson e paranete diezeugmenon, ambos instáveis (v. exemplo 1.3). Na escala tética, em contrapartida, as notas mi, lá e mi' são hypate meson, meson, mese e nete diezeugmenon, todas notas estáveis, e a espécie de quinta lá-mi', que domina a maior parte da peça, bem como a espécie de quarta mi-lá, que prevalece no final, dividem a espécie de oitava em duas metades consonantes.


Exemplo 1.5 — Epitáfio de Seikilos (transcrição)





Foi possível analisar a estrutura tonal desta breve canção segundo os critérios explanados pelos teóricos. No que diz respeito ao etos da canção, pode dizer-se que não é eufórico nem depressivo, mas sim equilibrado entre os dois extremos, o que está em harmonia com o tonos jónico. Na ordenação dos quinze tonoi segundo Alípio, o jónico, com proslambanomenos em Si e mese em si, ocupa um lugar intermédio entre o mais grave, o hipodórico, com proslambanomenos em Fá e mese em fá, e o mais agudo, o hiperlídio, com proslambanomenos em sol e mese em sol'. As terceiras maiores dariam ao ouvinte de hoje, e provavelmente também ao da época, uma impressão de alegria, tal como a quinta ascendente de abertura. A mensagem do poema é, com efeito, optimista.

Estela funerária de Aidine, próximo de Trales, na Ásia Menor.

Tem inscrito um epitáfio, uma espécie de escólio ou canção de bebida,

com notação melódica e rítmica; o autor é identificado

nas primeiras linhas como sendo Seikilos.

Datação provável: século I d. C.

(Copenhaga, Museu Nacional, n.º 14 897 de inventário)




Figura 1.1 — Análise da inscrição de Seikilos


A canção de Seikilos teve especial interesse para os historiadores devido a clareza da sua notação rítmica. As notas sem sinais rítmicos por cima das letras do alfabeto equivalem a uma unidade de duração (chronos protos); o traço horizontal indica um diseme, equivalente a dois tempos, e o sinal horizontal com um prolongamento vertical do lado direito é um triseme, equivalente a três tempos. Cada verso tem doze tempos.



NAWM 1 — Eurípides, Orestes (fragmento)

O fragmento do coro do Orestes de Eurípides chegou até nós num papiro dos séculos III ou II a. C. Calcula-se que a tragédia seja de 408 a. C. É possível que a música tenha sido composta pelo próprio Eurípides, que ficou famoso pelos seus acompanhamentos musicais. Este coro é um stasimon, uma ode cantada com o coro imóvel no seu lugar na orquestra, zona semicircular entre o palco e a bancada dos espectadores. O papiro contém sete versos com notação musical, mas só subsistiu a parte central dos versos; o início e o fim de cada verso vêm, por conseguinte, entre parênteses no exemplo 1.6. Os versos do papiro não coincidem com os do texto. Chegaram até nós quarenta e duas notas da peça musical, mas faltam muitas outras. Por conseguinte, qualquer interpretação terá forçosamente de se basear numa reconstituição.

A transcrição é dificultada pelo facto de certos signos alfabéticos serem vocais enquanto outros são instrumentais, sendo alguns enarmónicos (ou cromáticos) e outros diatónicos (v. exemplo 1.6 e figura 1.2). A presente criação apresenta os intervalos densos como sendo cromáticos, mas, alterando o "matiz", estes poderiam ser igualmente transcritos como enarmónicos do tipo mais denso.



Exemplo 1.6 — Stasimon do Orestes (fragmento)


As notas que subsistiram enquadram-se no tonos lídio de Alípio. As três notas mais graves do tetracorde diezeugmenon são separadas pelo tom de disjunção do tetracorde meson cromático, que, por seu turno, surge conjunto com o tetracorde hypaton diatónico, do qual apenas são usadas as duas notas superiores. A peça parece, assim, ter sido escrita num género misto. A espécie de oitava ou harmonia é, aparentemente, a frígia, mas duas harmonias apresentadas pelo teórico musical e filósofo Aristides Quintiliano (século IV d. C.) como datando do tempo de Platão — a dórica e a frígia da sua classificação — coincidem quase exactamente com a escala que aqui encontramos, como se vê na figura 1.2.



No stasimon o coro das mulheres de Argos implora aos deuses que tenham piedade de Orestes, que seis dias antes de a peça começar assassinou a mãe, Clitemnestra.

Ele combinara com a irmã Electra punir a mãe por ter sido infiel ao pai, Agamémnon. O coro pede que Orestes seja libertado da loucura que se apossou dele desde o momento do crime. O ritmo da poesia, por conseguinte da música, é dominado pelo pé docmíaco, que era usado na tragédia grega em trechos de intensa agitação e sofrimento. O docmíaco combina três sílabas longas com duas breves, sendo muitas vezes, como sucede aqui, uma das sílabas longas substituída por duas mais breves, de forma que, em vez de cinco notas por pé, temos seis. No exemplo 1.6 os pés são separados por barras verticais nos símbolos que assinalam o "ritmo do texto" para cada linha do papiro.

O texto cantado é interrompido por sons instrumentais, sol' nos versos 1 a 4, e mi-si nos versos 5 e 6. O hypate hypaton (lá) é o tom que mais se destaca, pois dois dos versos (os versos 1 e 3, pontuados pela nota instrumental sol) terminam nessa nota e várias frases da melodia organizam-se em torno do paramese mi'; tanto lá como mi são notas estáveis no tonos lídio e são os tons mais graves dos dois tetracordes utilizados na peça (v. figura 1.2)[2].




Fragmento em papiro com trecho do

coro de Orestes (Eurípides),
ca. 200 a.C., transcrito em NAWM 1.

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Notas:

[1] Aristóteles, Problemas, 19.20 (919a).
[2] V. análise rítmica deste fragmento em Thomas J. Mathiesen, “Rhythm and meter in ancient Greek music”, in Music Theory Spectrum, 7, 1985, 159-180, donde são extraídos os exemplos 1.5 e 1.6.



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Epitáfio de Seikilos:
Gravação - versão 1 , versão 2 , versão 3
Orestes - Eurípides:
Gravação - versão 1 , versão 2
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