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Audição e audiação
O contributo epistemológico de Edwin Gordon para a história da pedagogia da escuta
Helena Caspurro
A questão da definição do conhecimento
<> Jaques-Dalcroze (1916, p. 10)
Não é de todo sustentável que a realização do músico possa ser concretizada, não importa a que nível, sem ouvir. Da mesma maneira que a acção do pintor, do bailarino, do escritor ou do matemático são inconcebíveis sem, respectivamente, ver, percepcionar as funções da linguagem corporal, dominar os códigos de significação da linguagem ou pensar em termos abstractos e simbólicos. Contudo, qualquer uma destas evidências não é suficiente para definir a qualidade dos processos envolvidos nos diferentes domínios de conhecimento que são exigidos a cada um dos seus actores. Não basta, portanto, ver para se ser pintor, escrever para se dominar a arte da escrita, coordenar os movimentos do corpo para se ser bailarino, saber as regras do raciocínio numérico para se ser matemático. Também na música não será de todo suficiente ouvir para se cantar, tocar com excelência ou compor uma obra polifónica, nem tão-pouco executar ou harmonizar ‘de ouvido’ uma bela canção de Mozart ou improvisar sobre um tema conhecido.
Ainda que não seja necessário grande erudição para se concluir tudo isto, o certo é que foi sobre esta problemática que, no terreno da música, a maioria dos pedagogos da primeira metade do século XX dedicou a sua obra educativa, abrindo caminho para uma das principais discussões filosóficas e científicas da actualidade: como definir o conhecimento musical e qual o papel da educação no seu processo de desenvolvimento. A ideia de que a manifestação de produtos ou desempenhos não é suficiente para a definição de conhecimento verdadeiramente assimilado é a questão levantada. Os factos são, aliás, tão velhos como actuais. Os produtos ou resultados saídos do interior das ‘catedrais’ responsáveis pela formação de especialistas na arte de ouvir comprova-o. Como explicar, por exemplo, fenómenos ainda hoje recorrentes no universo dos alunos de formação ‘erudita’, como a dificuldade em improvisar, compreender harmonia, ler ‘à primeira vista’, transpor ou tocar ‘de ouvido’, ou, de um modo geral, criar música? Que eficácia pode ser imputada a um sistema de ensino que se revela incapaz de responder a problemas de realização que estão para além da performance propriamente dita, da reprodução imitativa de notação e do conhecimento de teoria? Enfim, questionar a qualidade do conhecimento é pôr em causa a própria qualidade do paradigma de ensino instituído.
Sem dúvida que a forma como se aprende a assimilar música é um factor decisivo para o desenvolvimento não apenas de diferentes maneiras ou qualidades de audição, como de diferentes atitudes ou necessidades perante a música. A compreensão do fenómeno sonoro, no sentido de uma apropriação intrínseca da própria música, parece ser a variável que, estando muito para além do fenómeno estritamente perceptivo, permite estabelecer, senão totalmente, pelo menos de forma significativa, a dita diferença qualitativa. Ou seja, para os autores em questão será a forma como se processa a compreensão do que se ouve que explica o facto de estarmos ou não perante um músico. Assim como a forma como se processa a compreensão do que se vê poderia explicar a circunstância de estarmos ou não perante a presença de um artista plástico. E por aí fora…
Como denominar tal processo, como destrinçá-lo do fenómeno comum de ouvir, qual a sua mais-valia relativamente a outros modos de fazer e entender música – eis o motivo que terá levado psicólogos e pedagogos à procura e criação de termos ou conceitos, alguns deles bem conhecidos entre nós, como a escuta ou a audição interior. O mais recente, o conceito de audiação, encontra um corpo de sistematização teórica crê-se que sem paralelo na história da pedagogia musical: a teoria de aprendizagem musical de E. Gordon (2000b).
Resta pois perguntar o que acrescenta a audiação à pedagogia da audição. O que vem decisivamente sublinhar ou questionar?
A busca de alegorias: escuta, audição interior, ‘thinking in sound’…
<<É claro que se pode compor com o conhecimento teórico dos acordes, regras não faltam, mas o facto de serem ‘conhecidos’ não significa que são realmente ‘ouvidos’ >> Willems (1990, p. 25).
A procura de terminologias ou alegorias que permitam explicar e sublinhar, de uma maneira clara e concreta, a qualidade do processo de assimilação musical é um fenómeno constante na reflexão educativa de todo o século XX.
Matthay (1913) – que se preocupou com o processo psicológico da aprendizagem dos instrumentistas na época contemporânea a Jaques-Dalcroze – aborda o problema, sublinhando a diferença entre ouvir e escutar: <> (p. 5).
Audição interior é outra das expressões fulcrais nos discursos pedagógicos desenvolvidos ao longo do século XX. Willems (1950, 1970, 1976,1977), Orff (1961,1974,1978) – sobretudo através de Keetman (1974) –, Kodály (in Choksy, 1981), Martenot (in Frega, 1996), usam frequentemente aquela expressão com o mesmo sentido de escuta proposto por Matthay.
Mainwaring (cf. McPherson & Gabrielsson, 2002), um dos precursores da reflexão em Psicologia da Música, insiste, já no início do século XX, na ideia de que <>, enquanto que Jaques-Dalcroze (1916) vê no termo eurritmia – com o qual intitula uma parte fundamental do seu ‘método’ de ensino – a melhor forma de designar os princípios subjacentes à escuta sonora e cinestésica da música e, deste modo, a manifestação de desempenho musical intrinsecamente interiorizado, do qual depende decisivamente o desempenho da improvisação (que constitui outra das componentes essenciais do seu ‘método’).
A aplicação dos conceitos de escuta e de audição interior ao ensino instrumental verifica-se ainda em obras didácticas de pedagogos e instrumentistas de meados do século XX como, entre outros, Gieseking & Leimer (in Aiello & Williamon, 2002) e Donald Pond (in Like, Enoch & Haydon, 1996). Outros educadores, como Y. Trotter ou mesmo Montessori (in McPherson & Gabrielsson, 2002), advogam genericamente os mesmos princípios já no início do século XX.
Suzuki (1983; 1993), ao desenvolver um ‘método’ específico para o ensino de violino, expande os princípios da aprendizagem perceptiva dos sons à educação genérica da música (nomeadamente ao ensino de piano), sublinhando a ideia de que o processo de assimilação de conhecimento musical é semelhante ao da língua materna (mother tongue).
Kohut (1992) fundamenta o seu <> nos princípios pedagógicos defendidos por Suzuki, salientando as vantagens da aprendizagem ‘de ouvido’ no desenvolvimento da musicalidade e do desempenho dos instrumentistas.
Enfim, o que reter daqui? Que, para qualquer um dos autores citados, mais do que a defesa da escuta ou da audição interior, está a procura de uma alternativa pedagógica. Mais do que fazer música importa como é de facto apreendida ou assimilada pelo sujeito. Compreende-se assim que o privilégio dado ao canto, ao movimento corporal, a actividades de escuta sonora, à improvisação – antes da aprendizagem da teoria, da leitura e escrita musical – constitua uma regra fundamental deste paradigma de ensino.
É justo referir que, de um modo geral, a obra pedagógica desenvolvida pelos pedagogos do século XX prestou um valioso contributo à renovação e desenvolvimento da educação musical em várias partes do mundo. No entanto, tornase inevitável perguntar por que é as dificuldades de desempenho ao nível justamente da audição (drásticas, aliás, ao nível harmónico), da improvisação e, genericamente, do pensamento e expressão criativos – para não falar da iliteracia notacional – continuam a caracterizar, como se sabe, o perfil da média dos alunos que frequentam o ensino artístico.
Crê-se que esta situação pode ser explicada, em grande medida, pelo facto da maioria das abordagens pedagógico-didácticas não basear os seus métodos de aprendizagem – pelo menos de forma suficientemente sistematizada – numa teoria psicológica e sequencial dos processos envolvidos no acto de ouvir. Será por estas razões que autores como Waltters (1992) ou Gordon (2000b) argumentam que o conceito de ‘método’ – com o qual se identifica o trabalho de Jaques-Dalcroze, Willems, Kodály, Orff, Suzuki – não é suficiente, em termos educativos, para explicar e resolver os problemas cognitivos decorrentes da audição interior ao longo das várias fases do processo de realização e aprendizagem musical. Sem dúvida que a questão do desenvolvimento dos processos de compreensão musical constituiu o centro nevrálgico da reflexão de qualquer daqueles pedagogos. A importância que todos depositaram ao que se ensina, sobretudo durante as fases iniciais de escolaridade musical, não oferece dúvidas quanto ao que implícita ou mesmo explicitamente era defendido em termos de sequência de aprendizagem (veja-se, por exemplo, a importância que é depositada nos cancioneiros). Contudo, é a resposta ao quando e porque se aprende que a obra educativa daqueles ‘metodólogos’ não chega a vias de sistematização – pelo menos ao nível de uma teoria psicológica – facto que explica o apontamento crítico que lhes é dirigido. Dificilmente são abordadas, por exemplo, questões acerca da sequência dos processos de leitura e escrita ou dos âmbitos taxonómicos de conteúdo tonal ou rítmico. Assim como pouco se adianta acerca do papel da discriminação e inferência no processo de aprendizagem musical.
Muito menos o da improvisação e criatividade, nomeadamente no que concerne às suas funções de generalização e, por conseguinte, avaliação. Por outro lado, a caracterização dos mecanismos da compreensão musical resultantes do dito fenómeno de escuta pouco se demarca das questões que rodeiam os processos perceptivos, não havendo garantia de que o crivo da ‘interioridade’ não passe de um mero cantar ‘para dentro’, sem que a isso corresponda uma verdadeira compreensão do que se canta.
É claro que outras razões se podem argumentar para o insucesso educativo dos alunos, nomeadamente a diversidade de perfis – para não dizer de ouvidos... – dos professores em termos artísticos, científicos e pedagógicos. E fiquemos por aqui… O ciclo é perigosamente vicioso.
(cont...)
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