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Pelas Músicas, principiemos nosso destino (e/ou desatino) no mundo...
Quais foram então as melodias trazidas de Roma para terras francas? Ninguém pode responder com segurança a esta pergunta. Os tons da recitação, os tons dos salmos, e alguns dos outros géneros mais simples eram muito antigos e poderão ter sido preservados praticamente intactos desde os tempos mais remotos; cerca de trinta ou quarenta melodias de antífona poderão ter tido origem na época de S. Gregório e boa parte das melodias mais completas — tractos, graduais, ofertórios, aleluias — deverão ter sido usadas (talvez em versões mais simples) em Roma antes de se difundirem para norte; além disso, é possível que algumas das melodias mais antigas se tenham conservado nos manuscritos do canto romano antigo. Seja como for, podemos deduzir que no seu novo local de acolhimento grande parte, se não a totalidade, desta música importada terá sofrido modificações antes de, finalmente, ser registada sob a forma em que hoje a encontramos nos mais antigos manuscritos do Norte. Além disso, muitas novas melodias e novas formas de cantochão desenvolveram-se no Norte já depois do século IX. Em suma, praticamente todo o corpo do cantochão, tal como hoje o conhecemos, provém de fontes francas, que, provavelmente, se basearam em versões romanas, com acrescentos e correcções da responsabilidade dos escribas e músicos locais.
Uma vez que a maioria dos manuscritos transmitem um repertório e uma versão do cantochão compilada e corrigida no reino franco, os estudiosos foram levados a crer que boa parte do cantochão foi composto e tomou a forma definitiva nos centros religiosos do Norte. No entanto, comparações recentemente efectuadas entre as versões franca e romana antiga vieram reforçar a convicção de que a romana antiga representa o fundo original, que apenas terá sofrido ligeiras alterações ao ser acolhido na Gália. O cantochão conservado nos mais importantes manuscritos francos, nesta perspectiva, transmite o repertório tal como terá sido reorganizado sob a orientação do papa Gregório (590-604) e de um seu importante sucessor, o papa Vitaliano (657-672). Em virtude do papel que Gregório I terá supostamente desempenhado neste processo, tal repertório recebeu o nome de gregoriano. Depois de Carlos Magno ter sido coroado em 800 como chefe do Sacro Império Romano, ele próprio e os seus sucessores procuraram impor este repertório gregoriano e suprimir os diversos dialectos do cantochão, como o céltico, o galicano, o moçárabe, o ambrosiano, mas não conseguiram eliminar por completo os usos locais. Os monges da abadia beneditina de Solesmes, em França, organizaram nos séculos XIX e XX edições fac-similadas e comentadas das fontes do canto gregoriano na série Paléografphie musicale. Lançaram também edições modernas do cantochão em notação neumática, coligindo-o em volumes separados para cada categoria de canto; em 1903 o papa Pio X conferiu a esta obra o estatuto de edição oficial do Vaticano. Com a promoção da missa em língua vernácula pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), estes livros passaram a ser muito pouco usados nos serviços religiosos modernos e deixaram de ser regularmente reeditados.
O mais importante centro da igreja ocidental a seguir a Roma era Milão, cidade florescente ligada a Bizâncio e ao Oriente por laços culturais muito fortes; foi a residência principal dos imperadores do Ocidente no século IV e mais tarde veio a ser a capital do reino lombardo, no Norte da Itália, que teve a sua época de florescimento entre 568 e 744. De 374 a 397 foi bispo de Milão Santo Ambrósio, a quem se deve a introdução da salmodia em responsório no Ocidente. O papa Celestino I incorporou-a mais tarde na missa em Roma. Dada a importância de Milão e a energia e grande reputação pessoal de Santo Ambrósio, a liturgia e a música milanesas exerceram uma forte influência não só em França e Espanha, mas também em Roma. Os cânticos do rito milanês vieram mais tarde a ser reconhecidos por canto ambrosiano, embora seja duvidoso que alguma da música que chegou até nós date do tempo do próprio Santo Ambrósio. A liturgia ambrosiana, com o seu corpo completo de cânticos, manteve-se, em certa medida, em Milão até aos dias de hoje, apesar de ter havido várias tentativas para a suprimir. Muitos dos cânticos, na sua forma actual, são semelhantes aos da igreja de Roma, indicando, quer um intercâmbio, quer uma evolução, a partir de uma fonte comum. Nos casos em que há duas versões da mesma melodia, quando esta é de tipo ornamentado (como, por exemplo, um aleluia), a ambrosiana é, geralmente, mais elaborada do que a romana; nas de tipo mais despojado (como um salmo), a ambrosiana é mais simples do que a romana.
A PREEMINÊNCIA DE ROMA — Como capital imperial, a Roma dos primeiros séculos da nossa era albergou um grande número de cristãos, que se reuniam e celebravam os seus ritos em segredo. Em 313 o imperador Constantino concedeu aos cristãos os mesmos direitos e a mesma protecção que aos praticantes das outras religiões do império; desde logo a Igreja emergiu da sua vida subterrânea e no decurso do século IV o latim substituiu o grego como língua oficial da liturgia em Roma. À medida que declinava o pretígio do imperador romano, o do bispo de Roma ia aumentando, e começou gradualmente a ser reconhecida a autoridade preeminente de Roma em questões de fé e disciplina.
Com um número crescente de convertidos e riquezas cada vez mais avultadas, a Igreja começou a construir grandes basílicas, e os serviços deixaram de poder realizar-se de forma relativamente informal, como se celebravam nos primeiros tempos. Entre o século V e o século VII muitos papas se empenharam na revisão da liturgia e da música. A Regra de S. Bento (c. 520), conjunto de instruções determinando a forma de organizar um mosteiro, menciona um chantre, mas não indica quais eram os seus deveres. Nos séculos seguintes, porém, o chantre monástico tornou-se uma figura-chave do panorama musical, uma vez que era responsável pela organização da biblioteca e do scriptorium e orientava a celebração da liturgia. No século VIII existia já em Roma uma schola cantorum, um grupo bem definido de cantores e professores incumbidos de formar rapazes e homens para músicos de igreja. No século VI existia um coro, e atribui-se a Gregório I (Gregório Magno), papa de 590 a 604, um esforço de regulamentação e uniformização dos cânticos litúrgicos. As realizações de Gregório foram objecto de tal admiração que em meados do século IX começou a tomar forma uma lenda segundo a qual teria sido ele próprio, sob inspiração divina, quem compusera todas as melodias usadas pela Igreja. A sua contribuição real, embora provavelmente muito importante, foi sem dúvida menor do que aquilo que a tradição medieval veio posteriormente a imputar-lhe. Atribuem-se-lhe a recodificação da liturgia e a reorganização da schola cantorum; a designação de determinadas partes da liturgia para os vários serviços religiosos ao longo do ano, segundo uma ordem que permaneceu quase inalterada até ao século XVI; além disto, teria sido ele o impulsionador do movimento que levou a adopção de um repertório uniforme de cânticos em toda a cristandade. Uma obra tão grandiosa e tão vasta não poderia, como é evidente, ter sido realizada em apenas catorze anos.
Os cânticos da igreja romana são um dos grandes tesouros da civilização ocidental. Tal como a arquitectura românica, erguem-se como um autêntico monumento a fé religiosa do homem medieval e foram a fonte e a inspiração de boa parte do conjunto da música ocidental até ao século XVI. Constituem um dos mais antigos repertórios vocais ainda em uso no mundo inteiro e incluem algumas das mais notáveis realizações melódicas de todos os tempos. Ainda assim, seria um erro considerá-los puramente como música para ser ouvida, pois não é possível separá-los do seu contexto e do seu propósito litúrgicos.
A manuscript page in the Beneventan notational genre, single line
[Benevento (Italy), Biblioteca capitolare, MS 21 f. 235v]
OS PADRES DA IGREJA — Esta perspectiva está em sintonia com a convicção dos Padres da Igreja de que o valor da música residia no seu poder de elevar a alma à contemplação das coisas divinas. Eles acreditavam firmemente que a música podia influenciar, para melhor ou para pior, o carácter de quem a ouvia. Os filósofos e os homens da Igreja da alta Idade Média não desenvolveram nunca a ideia — que nos nossos dias temos por evidente — de que a música podia ser ouvida tendo apenas em vista o gozo estético, o prazer que proporciona a combinação de belos sons. Não negavam, é claro, que o som da música é agradável, mas defendiam que todos os prazeres devem ser julgados segundo o princípio platónico de que as coisas belas existem para nos lembrarem a beleza perfeita e divina; por conseguinte, as belezas aparentes do mundo que apenas inspiram o deleite egoísta, ou o desejo de posse, devem ser rejeitadas. Esta atitude está na origem de muitas das afirmações sobre a música que encontramos nos escritos dos Padres da Igreja (e, mais tarde, nos de alguns teólogos da reforma protestante).
Mais especificamente, a sua filosofia determinava que a música fosse serva da religião. Só é digna de ser ouvida na igreja a música que por meio dos seus encantos abre a alma aos ensinamentos cristãos e a predispõe para pensamentos santos. Uma vez que não acreditavam que a música sem letra pudesse produzir tais efeitos, excluíram, a princípio, a música instrumental do culto público, embora fosse permitido aos fiéis usar uma lira para acompanharem o canto dos hinos e dos salmos em suas casas e em reuniões informais. Neste ponto os Padres da Igreja debatiam-se com algumas dificuldades, pois o Antigo Testamento, especialmente o Livro dos Salmos, está cheio de referências ao saltério, a harpa, ao órgão e a outros instrumentos musicais. Como explicar estas alusões? O recurso habitual era a alegoria: "A língua é o 'saltério' do Senhor [...] por 'harpa' devemos entender a boca, que o Espírito Santo, qual plectro, faz vibrar [...] o 'órgão' é o nosso corpo [...]" Estas e muitas outras explicações da mesma ordem eram típicas de uma época que se comprazia em alegorizar as Escrituras.
A exclusão de certos tipos de música dos serviços religiosos da igreja primitiva tinha também motivos práticos. As peças vocais mais elaboradas, os grandes coros, os instrumentos e a dança associavam-se no espírito dos convertidos, mercê de uma tradição de longa data, aos espectáculos pagãos. Enquanto a sensação de prazer ligada a tais tipos de música não pôde, por assim dizer, ser transferida do teatro e da praça do mercado para a igreja, essa música foi objecto de uma grande desconfiança; antes "ser surdo ao som dos instrumentos" do que entregar-se a esses "coros diabólicos", a essas "canções lascivas e perniciosas". "Pois não seria absurdo que aqueles que ouviram a voz mística do querubim dos céus expusessem os seus ouvidos às canções dissolutas e às melodias alambicadas do teatro?" Mas Deus, apiedando-se da fraqueza humana, "juntou aos preceitos da religião a doçura da melodia [...] as melodias harmoniosas dos salmos foram introduzidas para que aqueles que são ainda crianças estejam, afinal, a formar as suas almas, mesmo quando julgam estar apenas a cantar a música[3]".
"Há quem diga que enfeiticei as pessoas com as melodias dos meus hinos", dizia Santo Ambrósio, acrescentando com orgulho, "e não o nego[4]." Havia certamente na Igreja quem desprezasse a música e tendesse a considerar toda a arte e a cultura como inimigas da religião, mas havia também homens que não só defendiam a arte e a literatura pagãs, como eles próprios, tão profundamente sensíveis a sua beleza, chegavam a recear o prazer que sentiam ao ouvirem música, mesmo na igreja. As célebres palavras de Santo Agostinho exprimem este dilema (v. vinheta).
Em 387 d. C. Santo Agostinho começou a escrever um tratado, Da Música, de que completou seis livros. Os cinco primeiros, após uma breve definição introdutória da música, tratam dos princípios da métrica e do ritmo. O sexto, revisto por volta de 409, aborda a psicologia, a ética e a estética da música e do ritmo. Santo Agostinho projectara inicialmente outros seis livros consagrados a melodia.
O conflito entre o sagrado e o profano na arte não é exclusivo da Idade Média. Sempre foi objecto de consenso geral a ideia de que certos tipos de música, por este ou aquele motivo, não são próprios para serem ouvidos na igreja. As diversas igrejas, as diversas comunidades, as diversas épocas, traçaram a fronteira em pontos diferentes, se bem que esse limite nem sempre seja nítido. O motivo por que nos primeiros tempos do cristianismo ele foi por vezes fixado tão próximo do ascetismo mais extremo prende-se com a situação histórica. A Igreja, nos seus começos, era um grupo minoritário a braços com a tarefa de converter toda a população da Europa ao cristianismo. Para o fazer tinha de instaurar uma comunidade cristã claramente separada da sociedade pagã que a rodeava e organizada por forma a proclamar, por todos os meios possíveis, a urgência de subordinar todas as coisas deste mundo ao bem-estar eterno da alma. Assim, na opinião de muita gente, qual exército avançando para o campo de batalha, não podia dar-se ao luxo de levar consigo um excesso de bagagem sob a forma de música que não fosse estritamente indispensável a sua missão. Na grande metáfora de Toynbee, a Igreja era "a crisálida donde saiu a nossa sociedade ocidental". A sua "semente de poder criador"[5] no domínio da música teve por encarnação o canto gregoriano. Os missionários cristãos que percorriam as antigas estradas romanas no início da Idade Média levaram estas melodias a todas as regiões da Europa ocidental. Elas foram uma das fontes que, com o passar do tempo, vieram a dar origem à música ocidental.
SANTO AGOSTINHO, Confissões, ACERCA DOS PRAZERES E PERIGOS DA MÚSICA
Quando me lembro das lágrimas derramadas ao ouvir os cânticos da vossa igreja nos primórdios da minha conversão à fé, e ao sentir-me agora atraído, não pela música, mas pelas letras dessas melodias, cantadas em voz límpida e modulação apropriada, reconheço, de novo, a grande utilidade deste costume. Assim flutuo entre o perigo do prazer e os salutares benefícios que a experiência nos mostra. Portanto, sem proferir uma sentença irrevogável, inclino-me a aprovar o costume de cantar na igreja para que, pelos deleites do ouvido, o espírito, demasiado fraco, se eleve até aos afectos da piedade. Quando, às vezes, a música me sensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso, com dor, que pequei. Nestes casos, por castigo, preferia não ouvir cantar. Eis em que estado me encontro. Chorai comigo, chorai por mim, vós que praticais o bem no vosso interior, donde nascem as boas acções. Estas coisas, Senhor, não Vos podem impressionar, porque não as sentis. Porém, ó meu Senhor e meu Deus, olhai por mim, ouvi-me, vede-me, compadecei-vos de mim e curai-me. Sob o Vosso olhar transformei-me, para mim mesmo, num enigma que é a minha própria enfermidade.
Santo Agostinho, Confissões, x, cap. 33, trad. de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, Livraria Apostolado da Imprensa, 6ª ed., 1958, p. 278.
BOÉCIO — A teoria e a filosofia da música do mundo antigo — ou aquilo que delas continuava acessível após a queda do Império Romano e as invasões bárbaras — foram sendo coligidas, resumidas, modificadas e transmitidas ao Ocidente ao longo dos primeiros séculos da era cristã. Os autores que mais se assinalaram neste processo foram Martianus Cappella, com o seu tratado enciclopédico intitulado As Núpcias de Mercúrio e da Filologia (princípio do século V) e Anicius Manlius Severinus Boetius (c. 480-524), com a sua De institutione musica (princípio do século VI).
A obra de Martianus era essencialmente um manual sobre as sete artes liberais: gramática, dialéctica, retórica, geometria, aritmética e harmonia, por esta ordem. As primeiras três — as artes da palavra — vieram a ser agrupadas sob o nome de trivium (o triplo caminho), enquanto as quatro últimas receberam de Boécio a designação de quadrivium (o quádruplo caminho) e constituíam as artes matemáticas.
Retratos fantasiosos de Boécio e Pitágoras e, em baixo, Platão e Nicômaco.
Boécio é representado a determinar a medida das notas num monocórdio.
Pitágoras toca campainhas com um de entre vários martelos. Platão e Nicômaco,
dois autores gregos, são retratados como autoridades consagradas no domínio da música.
Martianus recorreu ao artifício de apresentar as suas introduções a estes temas como discursos das damas de honor no casamento de Mercúrio com Filologia. A parte consagrada a harmonia baseia-se, em grande medida, no autor grego ecléctico do século IV Aristides Quintiliano, que, por seu turno, foi buscar as suas concepções teóricas a Aristóxeno, embora introduzindo na sua exposição ideias neoplatónicas.
Boécio foi a autoridade mais respeitada e mais influente na Idade Média no domínio da música. O seu tratado, escrito nos primeiros anos do século VI, ainda na juventude do autor, era um compêndio de música enquadrado no esquema do quadrivium, servindo, por conseguinte, como as restantes disciplinas matemáticas, de preparação para o estudo da filosofia. Pouca coisa neste tratado era fruto do próprio Boécio, pois tratava-se de uma compilação das fontes gregas de que dispunha, com especial destaque para um longo tratado de Nicómaco, que não subsistiu até aos nossos dias, e para o primeiro livro da Harmonia de Ptolemeu. Boécio redigiu manuais similares para a aritmética (que sobreviveu, completo, até a actualidade) e para a geometria e a astronomia, que desapareceram. Traduziu também do grego para o latim os quatro tratados de Aristóteles sobre lógica, que, no conjunto, são conhecidos por Organum. Embora os leitores medievais possam não se ter apercebido da dependência de Boécio em relação a outros autores, compreenderam que a autoridade da teoria musical e da matemática gregas estava naquilo que Boécio dizia sobre estes temas. Não os afligiam muito as contradições do De institutione musica, cujos primeiros três livros eram decididamente pitagóricos, enquanto o quarto continha elementos provenientes de Euclides e Aristóxeno e o quinto, baseado em Ptolemeu, era parcialmente antipitagórico. A mensagem que a maioria dos leitores apreendiam era que a música era uma ciência do número e que os quocientes numéricos determinavam os intervalos admitidos na melodia, as consonâncias, a composição das escalas e a afinação dos instrumentos e das vozes. Na parte mais original do livro, os capítulos de abertura, Boécio divide a música em três géneros: música mundana ("música cósmica"), as relações numéricas fixas observáveis no movimento dos planetas, na sucessão das estações e nos elementos, ou seja, a harmonia no macrocosmos; música humana, a que determina a união do corpo e da alma e das respectivas partes, o microcosmos, e música instrumental, ou música audível produzida por instrumentos, incluindo a voz humana, a qual ilustra os mesmos princípios de ordem, especialmente nos quocientes numéricos dos intervalos musicais. A imagem dos cosmos que Boécio e os outros escritores antigos delinearam nas suas dissertações sobre a música mundana e a música humana veio a reflectir-se na arte e na literatura da Idade Média mais tardia, nomeadamente na estrutura do "Paraíso" no último canto da Divina Comédia de Dante. Vestígios da doutrina da música humana persistiram ao longo de todo o Renascimento e mesmo até aos nossos dias sob a forma da astrologia.
Boécio sublinhou também a influÊncia da música no carácter e na moral. Em virtude disso, confere a música um papel importante, por direito próprio, na educação dos jovens, considerando-se ainda como uma introdução aos estudos filosóficos mais avançados.
Ao colocar a música instrumental — a música tal como hoje a entendemos — em terceiro lugar, tomando-a, presumivelmente, como a categoria menos importante, Boécio mostrava bem que, a exemplo dos seus mentores, concebia a música mais como um objecto de conhecimento do que como uma arte criadora ou uma forma de expressão de sentimentos. A música, diz ele, é a disciplina que se ocupa a examinar minuciosamente a diversidade dos sons agudos e graves por meio da razão e dos sentidos. Por conseguinte, o verdadeiro músico não é o cantor ou aquele que faz canções por instinto sem conhecer o sentido daquilo que faz, mas o filósofo, o crítico, aquele "que apresenta a faculdade de formular juízos, segundo a especulação ou razão apropriadas à música, acerca dos modos e ritmos, do género das canções, das consonâncias, de todas as coisas" respeitantes ao assunto[6].
Notas:
[1] Plínio, Cartas, 10, 96.
[2] Os nove cânticos bíblicos, textos líricos semelhantes aos salmos, mas não incluídos no Livro dos Salmos, são os seguintes: (1) cântico de Moisés depois da passagem do mar Vermelho, Êxodo, 15, 1-19; (2) cântico de Moisés antes de morrer, Deuteronômio, 32, 1-43; (3) cântico de Hannah, 1 Samuel, 2, 1-10; (4) cântico de Habacuc, 3, 2-19; (5) cântico de Isaías, Isaías, 26, 9-19; (6) cântico de Jonas, Jonas, 2, 3-10; (7) cântico das Três Crianças, primeira parte, Evangelhos Apócri-fos, Daniel, 3, 26-45, 52-56; (8) segunda parte do mesmo, ibid., 57-88; (9) cântico da abençoada Vir-gem Maria, Magnificat, Lucas, 1, 46-55; (10) segunda parte do mesmo, Benedictus Dominus, Lucas, 1, 68-79. Na igreja bizantina todos estes nove cânticos eram cantados no ofício da manhã, exceto na Quaresma, em que só se cantavam três. A igreja romana tinha um cântico do Antigo Testamento por dia, às laudas, e os três cânticos do Novo Testamento (Lucas, 1, 46-45, 1, 68-74, e 2, 24-32) às laudas, vésperas e completas de todos os dias.
[3] S. Jerônimo, S. Basílio, S. João Crisóstomo, in Théodore Gerold, Lês Peres de l’Église, Paris, 1931, pp. 86, 92 e 94-96; para uma lista de citações suplementares sobre estes assuntos, v. Hermann Abert, Die Musikanschauung des Mettelalters, Halle, 1905, p. 77, nota 1.
[4] Migne, Patrologiae, 1, 16, 1017.
[5] Arnold J. Toynbee, Study of History, 10 vols., Londres, 1935-1939, 1, 57-58.
[6] Boécio, De Institutione musica, 1.34.
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Bibliografia
Fontes
São apresentadas transcrições de todas as melodias e fragmentos gregos conhecidos em Egert Pohlmann, DenkmSler altgriechischer Fragmente und FSlschungen, Nuremberga, Carl, 1970.
A maioria dos textos gregos referidos neste capítulo existem em tradução inglesa. Strunk inclui uma selecção cuidada de excertos de Aristóteles, Platão, Aristóxeno e Cleónides no cap. 1 de Source Readings in Music History, Nova Iorque, Norton, 1950, pp. 3-4. Andrew Barker (ed.), Greek Musical Writings, i, The Musician and His Art, Cambridge, Cambridge University Press, 1984, contém textos de poetas, dramaturgos e filósofos, incluindo uma nova tradução da obra do Pseudo-Plutarco, Da Música.
Podem ainda ser consultadas as seguintes traduções: Aristóxeno, The Harmonics of Aristoxenus, trad., notas e introd. de Henry S. Macran, Oxford, Clarendon Press, 1902; Euclides, Sectio canonis, trad. de J. Mathiesen, "An annotated translation of Euclid's division of a monochord", JMT, 19.2, 1975, 236-258; Sextus Empiricus, Against the Musicians, trad. e notas de Denise Davidson Greaves, Lincoln e Londres, University of Nebraska Press, 1986; Aristides Quintiliano, On Music in Three Books, trad., com introd., comentários e notas, de Thomas J. Mathiesen, New Haven, Yale University Press, 1983; Bacchius Senior, trad. de Otto Steinmayer, "Bacchius Geron's Introduction to the Art of Music", JMT, 29.2, 1985, 271-298; Martianus Cappella, De nuptiis Philologiae et Mercurii, trad. in Willian Harris Stahl et. al., Martianus Cappella and the Seven Liberal Arts, Nova Iorque, Columbia University Press, 1971; Boécio, Fundamentals of Music (De institutione musica libri quinque), trad., com introd. e notas, de Calvin M. Bower, ed. Claude V. Palisca, New Haven, Yale University Press, 1989.
Leitura aprofundada
MÚSICA GREGA
Os estudos mais completos são o capítulo da autoria de Isobel Henderson, "Ancient Greek music", NOHM, vol. 1, e Edward Lippman, Musical Thought in Ancient Greece, Nova Iorque, Columbia University Press, 1964; v. também Reginald P. Winnington-Ingram, "Greece, I", in NG, para as questões relativas a história, aos instrumentos, a teoria e a prática, e Thomas J. Mathiesen, A Bibliography of Sources for the Study of Ancient Greek Music, Hackensack, NJ, Boonin, 1974.
Sobre os fragmentos de música grega recentemente descobertos, v. Thomas J. Mathiesen, "New fragments of ancient Greek music", AM, 53, 1981, 14-32.
Para a questão do etos, v. Warren De Witt Anderson, Ethos and Education in Greek Music, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1966, e Thomas J. Mathiesen, "Harmonia and ethos in ancient Greek music", JM, 3, 1984, 264-279.
Para uma análise mais aprofundada da teoria grega, v. Richard Crocker, "Pythagorean mathematics and music", in Journal of Aesthetics and Art Criticism, 22, 1963-1964, 189-198 e 325-335, Reginald P. Winnington-Ingram, Mode in Ancient Greek Music, Cambridge, Cambridge University Press, 1984, John Solomon, "Toward a history of the tonoi", JM, 3, 1984, 242-251, e André Barbera, "Octave species", ibid., 229-241.
Sobre outros textos gregos acerca da música, v. Andrew Barker (ed.), Greek Musical Wri-tings, que inclui igualmente uma descrição dos instrumentos musicais gregos na introdução.
Sobre a Oresteia e a sua estrutura dramática e musical, v. William C. Scott, Musical Design in Aeschylean Theatre, Hanover, NH, University Press of New England, 1984; sobre o papel do coro grego, v. Warren Anderson, "'What songs the sirene sang': problems and conjectures in ancient Greek music", in Royal Music Association Research Chronicle, 15, 1979, 1-16.
MÚSICA HEBRAICA
Sobre a música hebraica, v. A. Z. Idelsohn, Jewish Music in Its Historical Development, Nova Iorque, Schocken, 1967.
Para um resumo dos estudos e das perspectivas mais recentes acerca das relações entre a música judaica e a música da igreja cristã primitiva, v. James W. Mckinnon, "The question of psalmody in the ancient synagogue", EMH, 6, 1986, 159-191.
MÚSICA BIZANTINA
V. Oliver Strunk, Essays on Music in the Byzantine World, Nova Iorque, Norton, 1977, e Egon Wellesz, A History of Byzantine Music and Hymnody, 2.a ed., Oxford, Clarendon, 1971, e Eastern Elements in Western Chant, Oxford, Byzantine Institute, 1947.
Sobre a iconografia bizantina, v. Joachim Braun, "Musical instruments in Byzantine illuminated manuscripts", EM, 8, 1980, 312-327.
LITURGIA OCIDENTAL
Para o estudo da missa e do ofício, v. Cheslyn Jones, Geoffrey Wainwright e Edward Yarnold, SJ, The Study of Liturgy, Nova Iorque, Oxford University Press, 1978; sobre o canto benaventino, v. Thomas Forrest Kelley, "Montecassino and the old Beneventan chant", EMH, 5, 1985, 53-83.
Sobre as origens do canto gregoriano e a lenda de S. Gregório, v. Leo Treitler, "Homer and Gregory: the transmission of epic poetry and plainchant", MQ, 55, 1974, 333-372, e GLHWM, 1, e "'Centonate' chant: Übles Flickwerk or E pluribus unum?", JAMS, 28, 1975, 1-23, Willi Apel, "The central problem of Gregorian chant", JAMS, 9, 1956, 118-127, Paul Cutter, "The question of 'old Roman chant': a reappraisal", AM, 39, 1967, 2-20, e Helmut Hucke, "Toward a new historical view of Gregorian chant", JAMS, 33, 1980, 437-467. Os três últimos artigos reflectem a controvérsia sobre as origens do canto gregoriano, que vem também resumida em Andrew Hughues, Medieval Music: the Sixth Liberal Art, Toronto, Univesity of Toronto Press, 1980, secções 605 e segs.
Kenneth Levy, "Toledo, Rome and the legacy of gaul", EMH, 4, 1984, 49-99, e "Charlemagne's archetype of Gregorian chant", JAMS, 40, 1987, 1-30, apresenta uma nova data para o registo por escrito do canto gregoriano (c. 900) e uma nova perspectiva acerca da "supressão" do galicano.
Sobre o papel do cantor, v. Margot E. Fassler, "The office of the cantor in early western monastic rules and costumaries: a preliminary investigation", EMH, 5, 1985, 29-51.
Sobre Boécio, v. Calvin M. Bower, "Boethius and Nicomachus: an essay concerning the sources of De institutione musica", Vivarium, 16, 1978, 1-45.
Sobre a música no âmbito do trivium e do quadrivium, v. E. A Lippman, "The place of music in the system of liberal arts", in Jan LaRue (ed.), Aspects of Medieval and Renaissance Music: a Birthday Offering to Gustave Reese, Nova Iorque, Norton, 1966, pp. 545-559.
V. também J. W. McKinon (ed.), Music in Early Christian Literature, Cambridge, Cambridge University Press, 1987, e M. E. Fassler, "Accent, meter and rhythm in medieval treatises 'De rithmis'", JM, 5, 1987, 164-190.
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Estela funerária de Aidine, próximo de Trales, na Ásia Menor.
Tem inscrito um epitáfio, uma espécie de escólio ou canção de bebida,
com notação melódica e rítmica; o autor é identificado
nas primeiras linhas como sendo Seikilos.
Datação provável: século I d. C.
(Copenhaga, Museu Nacional, n.º 14 897 de inventário)
A canção de Seikilos teve especial interesse para os historiadores devido a clareza da sua notação rítmica. As notas sem sinais rítmicos por cima das letras do alfabeto equivalem a uma unidade de duração (chronos protos); o traço horizontal indica um diseme, equivalente a dois tempos, e o sinal horizontal com um prolongamento vertical do lado direito é um triseme, equivalente a três tempos. Cada verso tem doze tempos.
NAWM 1 — Eurípides, Orestes (fragmento)
O fragmento do coro do Orestes de Eurípides chegou até nós num papiro dos séculos III ou II a. C. Calcula-se que a tragédia seja de 408 a. C. É possível que a música tenha sido composta pelo próprio Eurípides, que ficou famoso pelos seus acompanhamentos musicais. Este coro é um stasimon, uma ode cantada com o coro imóvel no seu lugar na orquestra, zona semicircular entre o palco e a bancada dos espectadores. O papiro contém sete versos com notação musical, mas só subsistiu a parte central dos versos; o início e o fim de cada verso vêm, por conseguinte, entre parênteses no exemplo 1.6. Os versos do papiro não coincidem com os do texto. Chegaram até nós quarenta e duas notas da peça musical, mas faltam muitas outras. Por conseguinte, qualquer interpretação terá forçosamente de se basear numa reconstituição.
A transcrição é dificultada pelo facto de certos signos alfabéticos serem vocais enquanto outros são instrumentais, sendo alguns enarmónicos (ou cromáticos) e outros diatónicos (v. exemplo 1.6 e figura 1.2). A presente criação apresenta os intervalos densos como sendo cromáticos, mas, alterando o "matiz", estes poderiam ser igualmente transcritos como enarmónicos do tipo mais denso.
No stasimon o coro das mulheres de Argos implora aos deuses que tenham piedade de Orestes, que seis dias antes de a peça começar assassinou a mãe, Clitemnestra.
Ele combinara com a irmã Electra punir a mãe por ter sido infiel ao pai, Agamémnon. O coro pede que Orestes seja libertado da loucura que se apossou dele desde o momento do crime. O ritmo da poesia, por conseguinte da música, é dominado pelo pé docmíaco, que era usado na tragédia grega em trechos de intensa agitação e sofrimento. O docmíaco combina três sílabas longas com duas breves, sendo muitas vezes, como sucede aqui, uma das sílabas longas substituída por duas mais breves, de forma que, em vez de cinco notas por pé, temos seis. No exemplo 1.6 os pés são separados por barras verticais nos símbolos que assinalam o "ritmo do texto" para cada linha do papiro.
O texto cantado é interrompido por sons instrumentais, sol' nos versos 1 a 4, e mi-si nos versos 5 e 6. O hypate hypaton (lá) é o tom que mais se destaca, pois dois dos versos (os versos 1 e 3, pontuados pela nota instrumental sol) terminam nessa nota e várias frases da melodia organizam-se em torno do paramese mi'; tanto lá como mi são notas estáveis no tonos lídio e são os tons mais graves dos dois tetracordes utilizados na peça (v. figura 1.2)[2].
Fragmento em papiro com trecho do