quarta-feira, 3 de setembro de 2008

História da Música Ocidental - Capítulo 1, parte 1.2. O Sistema Musical Grego





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1.2 O sistema musical grego


A teoria musical grega, ou harmonia, compunha-se tradicionalmente de sete tópicos: notas, intervalos, géneros, sistemas de escalas, tons, modulação e composição melódica. Estes pontos são enumerados por esta ordem por Cleónides (autor de data incerta, talvez do século II d. C.)[1] num compêndio da teoria aristoxeniana; o próprio Aristóxeno, nos seus Elementos de Harmonia (c. 330 a. C.), discute demoradamente cada um dos tópicos, mas ordenando-os de forma diferente. Os conceitos de nota e de intervalo dependem de uma distinção entre dois tipos de movimento da voz humana: o contínuo, em que a voz muda de altura num deslizar constante, ascendente ou descendente, sem se fixar numa nota, e o diastemático, em que as notas são mantidas, tornando perceptíveis as distâncias nítidas entre elas, denominadas "intervalos". Os intervalos, como os tons, os meios-tons e os dítonos (terceira), combinavam-se em sistemas ou escalas. O bloco fundamental a partir do qual se construíam as escalas de uma ou duas oitavas era o tetracorde, formado por quatro notas, abarcando um diatessarão, ou intervalo de quarta. A quarta foi um dos três intervalos primários precocemente reconhecidos como consonâncias. Diz-nos a lenda que Pitágoras descobriu as consonâncias a partir de quocientes simples, ao dividir uma corda vibrante em partes iguais. Na razão de 2:1 terá encontrado a oitava, na de 3:2 a quinta e na de 4:3 a quarta.

Havia três géneros ou tipos de tetracordes: o diatónico, o cromático e o enarmónico. As notas extremas dos tetracordes eram consideradas como tendo altura estável, enquanto as duas notas intermédias podiam situar-se em pontos convenientes no contínuo entre as notas extremas. O intervalo inferior era geralmente o menor e o superior o maior [exemplo 1.1, a), b), c)]. No tetracorde diatónico os dois intervalos superiores eram tons inteiros e o inferior um meio-tom. No cromático o intervalo superior era um semidítono, ou terceira menor, e os dois intervalos inferiores, formando uma zona densa, ou pyknon, eram meios-tons. No enarmónico o intervalo superior era um dítono, ou terceira maior, e os dois intervalos inferiores do pyknon eram menores do que meios-tons, quartos de tom, ou próximos do quarto de tom. Todos estes componentes do tetracorde podiam variar ligeiramente de amplitude, e esta variedade criava "matizes" dentro de cada género.









Aristóxeno defendia que o verdadeiro método para determinar os intervalos era através do ouvido, e não de quocientes numéricos, como pensavam os seguidores de Pitágoras. No entanto, para descrever a amplitude de intervalos menores do que a quarta dividia o tom inteiro em doze partes iguais e usava estas como unidades de medida. Das descrições de Aristóxeno e de alguns textos de teóricos mais tardios podemos inferir que os gregos antigos, como a maior parte dos povos orientais, ainda nos nossos dias, faziam uso corrente de intervalos menores do que o meio-tom. E encon-tramos, efectivamente, tais microtons no fragmento de Eurípides (NAWM 1).







Cada uma das notas, excepto o mese e o proslambanomenos, tinha um nome duplo, por exemplo, nete hyperbolaion, em que o primeiro termo indicava a posição da nota no tetracorde e o segundo era o nome do próprio tetracorde. Os tetracordes eram denominados segundo a respectiva posição: hyperbolaion, "notas extremas"; diezeugmenon, "disjunção"; meson, "meio"; hypaton, "o último".

Dois tetracordes podiam combinar-se de duas formas diferentes para formarem heptacordes (sistemas de sete notas) e sistemas de uma ou duas oitavas. Se a última nota de um tetracorde era também a primeira de outro, os tetracordes diziam-se conjuntos; se eram separados por um tom inteiro, eram disjuntos (v. exemplo 1.2, onde T = tom inteiro e m = meio-tom). Daqui derivou, com o passar do tempo, o sistema perfeito completo — uma escala de duas oitavas composta de tetracordes alternadamente conjuntos e disjuntos, como se vê no exemplo 1.3. O Lá mais grave deste sistema, uma vez que ficava de fora do sistema de tetracordes, era considerado um tom suplementar (proslambanomenos).

















Algumas das notas são designadas a partir da posição da mão e dos dedos ao tocar a lira. Lichanos significa "dedo indicador". Hypate significa que se trata da primeira nota do primeiro tetracorde, enquanto nete deriva de neaton, ou "último a chegar". O nome do tetracorde diezeugmenon provém do facto de o intervalo Si-Lá ser o tom inteiro que separa dois tetracordes disjuntos, o "ponto de disjunção" — em grego, diazeuxis.

No exemplo 1.3 os tons exteriores ou fixos dos tetracordes terão sido representados na notação moderna por notas brancas. A altura dos dois tons intermédios de cada tetracorde (representados por notas pretas) podia, como atrás explicámos, ser modificada por forma a produzir os diversos matizes e os géneros enarmónico e cromático, mas, independentemente da modificação de altura, estas notas conservavam os mesmos nomes que no género diatónico (por exemplo, mese, lichanos, parhypate e hypate no tetracorde conjunto do meio). Havia também um sistema perfeito menor que consistia numa oitava de lá a Lá, como no sistema perfeito maior, com um tetracorde conjunto suplementar (denominado synemmenon, ou associado) constituído pelas notas ré'-dó'-sib-lá.

A questão dos tonoi era objecto de divergências consideráveis entre os escritores antigos, o que não é surpreendente, uma vez que os tonoi não eram construções teóricas anteriores a composição mas um meio de organizar a melodia, e as práticas melódicas divergiam grandemente no âmbito geográfico e cronológico da cultura grega:

A música da Grécia antiga abrangia peças jónicas (ou seja, asiáticas), como os cantos épicos de Homero e as rapsódias, peças eólicas (das ilhas gregas), como as canções de Safo e Alfeu, peças dóricas (do Sul da Grécia), como os versos de Píndaro (poeta epiniciano)*, Ésquilo, Sófocles, Eurípides (os poetas trágicos) e Aristófanes (o poeta cómico), peças délficas (do Norte da Grécia) helenísticas, como os hinos a Apolo, a inscrição funerária pagã de Seikilos do século I, um "hino cristão" do século IV e todo o resto de um vasto corpus, que se perdeu quase por inteiro, de música grega composta primeiro sem, e depois com, o auxílio de uma notação e de uma aprendizagem técnica, ao longo do período de cerca de 1200 anos que medeia entre Homero e Boécio[2].

Aristóxeno comparou as discordâncias quanto ao número e altura dos tonoi com as disparidades entre os calendários de Corinto e de Atenas. A parte do tratado onde apresentaria a sua perspectiva não chegou até nós, mas a exposição de Cleónides deriva dela com toda a probabilidade. A palavra tonos, ou "tom", dizia ele, tinha quatro significados: nota, intervalo, região da voz e altura. É usada com o sentido de região da voz quando se refere ao tonos dórico, ao frígio ou ao lídio. Aristóxeno, acrescentava ainda Cleónides, distinguia treze tonoi. Em seguida enumerava-os e mostrava que cada um deles começa no seu meio-tom da oitava.

Para fazermos uma ideia mais exacta do que eram os tonoi temos de recorrer a outros autores, possivelmente posteriores, como Alípio (cerca do século III ou IV) e Ptolemeu. Alípio apresentava tábuas de notação para quinze tonoi (os de Aristóxeno e dois mais agudos), que revelam ter cada tonos a estrutura do sistema perfeito, maior ou menor, sendo um dado tonos meio-tom mais alto ou mais baixo do que o seguinte. A notação sugere que o hipolídio corresponderia a escala natural, como o lá a Lá do exemplo 1.3. Ptolemeu considerava que treze era um número excessivo de tonoi, pois, segundo a sua teoria, o propósito dos tonoi era permitir que fossem cantadas ou tocadas, dentro do âmbito limitado desta ou daquela voz ou instrumento, determinadas harmoniai, e só havia sete maneiras de combinar os sons da oitava numa harmonia. Uma harmonia, como mais tardiamente o modo, era caracterizada por um certo número de atributos, como o etos, o feminino/masculino, as notas excluídas, as preferências étnicas, e assim sucessivamente, mas a cada harmonia era associada uma espécie particular de oitava.

Ao discutir a questão das espécies de consonâncias, Cleónides demonstrou que havia três espécies de quartas, quatro espécies de quintas e sete de oitavas. Quer isto dizer que os tons ou meio-tons (ou intervalos menores) podiam ser ordenados de um número de formas sempre igual ao número de notas do intervalo menos um. A quarta diatónica podia ascender das seguintes formas: m-T-T (como a quarta Si-mi), T-T-m (como dó-fá) e T-m-T (como ré-sol). Havia espécies equivalentes para a quarta cromática e enarmónica e também para a quinta e a oitava. Às espécies de oitavas atribuiu Cleónides os nomes étnicos dórica, frígia, etc., demonstrando que todas podiam ser representadas como segmentos do sistema perfeito completo na sua forma natural. Assim, a oitava mixolídia corresponde a Si-si, a lídia a dó-dó', a frígia a ré-ré', a dórica a mi-mi', e assim por diante, até a hipodórica, que corresponde a lá-Lá'. Por conseguinte, as espécies de oitavas são como uma série ascendente de modos, mas esta é uma falsa analogia, pois o autor apenas pretendia com ela tornar mais fácil a memorização da sucessão dos intervalos. Não deixa de ser, no entanto, extraordinária a coincidência entre as designações de Cleónides para as sete espécies de oitavas e as de Ptolemeu para os tonoi, de que aquelas espécies derivam no seu sistema.

O argumento de Ptolemeu para pôr de parte todos os tonoi, excepto sete, baseava-se na convicção de que a altura do som (aquilo a que hoje damos o nome de registo) não era a única fonte importante de variedade e expressividade no domínio da música, sendo mais importante ainda a combinação dos intervalos dentro de um determinado âmbito da voz. Na realidade, ele desprezava a mudança ou modulação do tons, que, na sua opinião, não alterava a melodia, enquanto a modulação das espécies de oitava ou harmonia modificava o etos ao alterar a estrutura de intervalos da melodia. Só eram necessários sete tonoi para tornar possíveis sete combinações ou espécies dos intervalos componentes no espaço de uma oitava, ou dupla oitava, por exemplo, a oitava central mi-mi'. Na posição central colocava o tonos dórico, tal como fizera Cleónides, e era essa a escala natural, que na nossa notação surgiria sem acidentes. Um tom inteiro acima deste vinha o tonos frígio, um tom acima deste o lídio e meio-tom mais acima o mixolídio. Meio-tom abaixo do dórico vinha o hipolídio, um tom inteiro abaixo deste o hipofrígio e mais um tom abaixo o hipodórico. Enquanto Alípio representava através de letras todo o conjunto de quinze notas transposto para cima ou para baixo, Ptolemeu encarava os limites da voz como confinados a duas oitavas, de forma que o único tonos que apresentava integralmente o sistema perfeito completo na sua ordem normal era o dórico (v. exemplo 1.4); aos tonoi mais altos faltavam as notas mais agudas e eram acrescentadas notas suplementares mais graves, sucedendo o inverso com os tonoi inferiores ao dórico. A oitava central continha os mesai (plural de mese) de todos os tonoi. Deste modo, ré era o mese do mixolídio, dó# o mese do lídio, e assim por diante. Estas notas eram mesai em virtude da sua função na transposição do sistema perfeito completo, enquanto o tético, ou mese fixo, permanecia sempre na posição central. Imaginemos uma harpa de quinze cordas, cada corda com um nome próprio, como mese ou paramese diezeugmon, conservando esse nome mesmo que lhe fosse conferida uma função diferente. Assim o mese funcional frígido podia ser colocado em si, ou paramese tético, um tom inteiro acima do mese natural, tético ou dórico, que é lá.


Exemplo 1.4 — Sistema de espécies de oitavas, segundo Cleónides, e sistema de tonoi, segundo Ptolemeu.


Podemos agora considerar aquilo que Platão e Aristóteles designavam por harmonia, termo que geralmente se traduz por modo. Não esqueçamos que eles escreviam acerca da música de um período muito anterior ao dos ensaios teóricos atrás citados. "Os modos musicais", diz Aristóteles, "apresentam entre si diferenças fundamentais, e quem os ouve é por eles afectado de maneiras diversas. Alguns deixam os homens graves e tristes, como o chamado mixolídio; outros enfraquecem o espírito, como os modos mais brandos; outro ainda suscita um humor moderado e tranquilo, e tal parece ser o efeito particular do dórico; o frígio inspira o entusiasmo[3]." Será a posição central da oitava dórica mi-mi' no sistema perfeito completo, ou seja, a localização intermédia dos seus tons, ou a combinação de tons e meios-tons da respectiva espécie de oitava ou harmonia (descendo na sequência T-T-m-T-T-T-m), o factor que induz um humor moderado e tranquilo ou, mais genericamente, qualquer outro estado de espírito? Possivelmente, uma conjugação de ambas as coisas, mas o mais provável é que Aristóteles não tivesse em mente nada de tão técnico e específico, mas sim a natureza expressiva genérica das melodias e configurações melódicas características de um determinado modo, pois associava de forma bem clara a estes elementos os ritmos particulares e as formas poéticas correspondentes a esse modo.

Poderá ter havido outras associações, nem poéticas nem musicais, como as tradições, os costumes e as atitudes adquiridas, mais ou menos inconscientes, para com os diferentes tipos de melodia; é também possível que, originariamente, os nomes dórico, frígio, etc., se referissem a estilos particulares de música ou formas de interpretação características das diversas raças de que o povo grego dos tempos históricos descendia.




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Notas:


[1] A sua Introdução à Harmonia encontra-se em Source Readings in Music History, de Olivier Strunk, Nova Iorque, Norton, 1950, pp. 34-46.

* Epinícias: nome genérico das odes triunfais de Píndaro. (N. da T.)


[2] John Solomon, “Towards a history of tonoi”, in The Journal of Musicology, 3, 1984, 242-251; v. Também as outras comunicações do mesmo simpósio, “The ancient harmoniai, tonoi and octave species in theory and practice”, ibid., pp. 221-286.


[3] Política, 8.1340a; cp. Com a República de Platão, 3.398 e segs.

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