segunda-feira, 15 de setembro de 2008

A musica mensurata e a construção da temporalidade moderna

(medieval clock tower of Sighisoara)




* * *




Do tempo analógico ao tempo abstrato: a musica mensurata e a construção da temporalidade moderna



Maya Suemi Lemos



(Maya Suemi Lemos é doutoranda em História da Música e Musicologia e membro doCentre de Recherches sur le Langage Musical (CRLM) da Université de Paris IV — Sorbonne)




Resumo


No final do século XII começa a delinear-se, na sociedade urbana ocidental, o processo de transformação da consciência do tempo que opera a transição de uma temporalidade medieval a uma temporalidade moderna. Relacionado à emergência de uma mentalidade aritmética, esse processo se insere num contexto amplo de racionalização e especulação que afeta igualmente a música. De fato, o processo de transição da música não-mensurável à música mensurável é análogo àquele que conduz do tempo medieval ao tempo moderno dos relógios mecânicos. Ele é assim revelador do movimento de idéias e de estruturas mentais de representação que leva à transformação da temporalidade.

Palavras-chave: tempo, música e sociedade, história medieval, notação musical.



* * *



O relógio mecânico não é então telúrico nem cósmico.
É uma terceira criação, uma obra do pensamento, que
não indica o tempo dos astros nem o da terra. Ele tem o
dom do tempo abstrato, intelectual. Não de um tempo
que se oferece como a luz do sol e dos elementos, mas
de um tempo que o homem constrói e assume.

(Ernst Jünger, Das Sanduhrbuch, 1954)





Numa extensa genealogia que se inicia com os escritos pioneiros de Bilfinger (1892) e passa pelos estudos de Sombart (1992), Needham (1965), Mumford (1950), Landes (1987), Le Goff (1977) e Pomian (1984) — para citar apenas alguns dos principais nomes —, a historiografia vem tentando descrever há mais de um século, não sem obstáculos e discordâncias, o processo de transformação da consciência do tempo na sociedade urbana medieval ocidental, que, articulado e simbolizado pelo aparecimento do relógio mecânico, opera a transição de uma temporalidade medieval a uma temporalidade moderna.


Se a data da aparição dos primeiros relógios mecânicos é objeto de controvérsia (1), podendo ser estimada, segundo cada autor, de c. 1260 a c. 1330, todos são unânimes, no entanto, em atribuir uma importância fundamental, no processo de transformação da temporalidade, ao surgimento deste instrumento. E isto tanto do ponto de vista de seu princípio de funcionamento, que viabiliza a contagem moderna das horas, quanto daquilo que ele simboliza em termos sociais: o estabelecimento de uma nova ordem política, cultural e econômica, laicizada e citadina. De fato, Bilfinger já advertia que a história da evolução das técnicas não seria suficiente para explicar a passagem do tempo medieval ao tempo moderno. Era preciso interrogar a história social e cultural. A sua intuição apontava para a sociedade urbana como o meio onde surge a necessidade dessa transição e que ao mesmo tempo a impulsiona. Le Goff (1977: 48), seguindo essa linhagem, nos mostra que é nesse processo, segundo ele um dos maiores eventos da história das mentalidades, que é elaborada a ideologia do mundo moderno, impulsionada pela transformação das estruturas e das práticas econômicas. Pois é no contexto da indústria urbana que se imporá a necessidade de uma medida mais precisa do tempo que regule a duração da jornada de trabalho: a burguesia têxtil, numa conjuntura de ascensão social, obterá permissões para instalar sinos e, mais tarde, relógios mecânicos no alto das torres citadinas com a finalidade de sinalizar os períodos de trabalho (2). Ela se apropria assim de um tempo até então marcado e regulado pelo ciclo natural do dia e pelas horas canônicas das igrejas e mosteiros. Esse novo tempo laicizado — tempo do trabalho (3) — se afirmará pouco a pouco, reflexo e expressão de uma nova sociedade e de uma nova economia que vem substituir uma economia medieval cadenciada pelos ritmos agrários, "isenta de pressa, sem preocupação com a exatidão, sem imperativos de produtividade", à imagem de uma sociedade ainda "sem grandes apetites, pouco exigente, pouco capaz de esforços quantitativos" (Le Goff, 1977: 68).


Esse processo de transformação da temporalidade pode ser compreendido, numa outra perspectiva, dentro de um contexto amplo de racionalização e especulação que começa a se afirmar no fim do século XII e culmina nos monumentos escolásticos do século XIII. Trata-se da "emergência de uma mentalidade aritmética", de uma "invasão do número"(4), que afeta o mundo do mercado, sem dúvida, mas também a universidade. A música, disciplina prática por um lado, mas pertencente então ao quadrivium e, como tal, investida de um status de scientia, participa também desse movimento. Considerada expressão última do número, das relações numéricas (harmonia), mas além disso, por sua natureza intrínseca, fenômeno necessariamente temporal, ela se encontra implicada em toda reflexão sobre o tempo e sua medida. De fato, a uma modernização do tempo corresponde, como veremos, uma modernização do tempo musical, materializada na música dita mensurável e sistematizada através de um esforço prodigioso de abstração e objetivação do qual participam não apenas músicos, mas também teóricos ligados à universidade. O processo de transição da música não-mensurável à música mensurável é análogo, sob inúmeros pontos de vista, àquele que conduz do tempo medieval ao tempo moderno dos relógios mecânicos. Ele é assim revelador do movimento de idéias e de estruturas mentais de representação que leva à transformação da temporalidade. Examinando aqui as principais etapas desse processo, mesmo que de maneira sumária, pretendemos mostrar que o estudo da evolução da música e da notação musical, particularmente dinâmica nesse período, pode contribuir para uma compreensão cada vez mais abrangente de um momento crucial de transformação das mentalidades no Ocidente.



Relógio mecânico e racionalização do tempo


Foi o desenvolvimento do sistema de escape, derivado do mecanismo dos horologia nocturna ou excitatoria (5) monásticos, que, de um ponto de vista técnico, permitiu a aparição dos primeiros relógios mecânicos no século XIII. Antes ainda da segunda metade do século XIV, boa parte dos grandes centros urbanos da Europa ocidental já ostentava no alto de suas torres um exemplar dessa nova meraviglia. E era bem de uma maravilha, de um gadget, que parecia tratar-se então: ainda frágeis e imprecisos nesses primórdios (freqüentemente em pane e podendo necessitar de ajustes diários de até uma hora), sua função era mais ostentatória que utilitária (Le Goff, 1977: 66-79). A sua difusão representa, no entanto, uma mudança brusca e essencial no paradigma de medida do tempo: os relógios mecânicos inauguram um princípio que transformará definitivamente a maneira como o homem apreende e representa o tempo. Pois, em vez de mimetizar o fluxo do tempo tal como faziam o relógio solar e a clepsidra, o relógio mecânico o racionaliza, recortando o continuum temporal em um número mensurável de instantes regulares e abstratos. De uma representação analógica, mimética do tempo, passa-se assim a uma representação abstrata e objetivada.


A concepção de um tal tempo, fragmentado e quantificado em instantes, levará, é verdade, ainda alguns séculos para ser integrada definitivamente nas mentalidades — a divisão da hora em minutos e segundos não entrará no uso habitual antes do fim do século XVI (Dohrn-Van Rossum, 1997: 294). Porém, o batimento regular do relógio mecânico, mais do que introduzir a idéia de uma segmentação abstrata do tempo, vai implicar uma outra possibilidade, absolutamente nova e não sem grandes conseqüências: a de determinar horas iguais, independentes dos ciclos naturais. Pois, até então, as horas civis correspondiam às horas canônicas dos ofícios litúrgicos (6), calculadas de acordo com o ciclo solar (12 horas diurnas e 12 horas noturnas) e como tal desiguais, variando em sua duração segundo a estação do ano. O dia civil era cadenciado pela sinalização episódica dos ofícios litúrgicos, e era assim que, por exemplo, o Parlamento de Paris começava seus trabalhos junto com a primeira missa da Sainte-Chapelle e se dispersava depois do sino da nona; e que em Bruges o tribunal ouvia as causas até o meio-dia, e as apelações até as vésperas (Landes, 1987: 119). A aparição do relógio mecânico conduzirá à substituição dessa temporalidade elástica por uma temporalidade regular, baseada em horas iguais, objetivando o tempo e trazendo a possibilidade de uma sincronização temporal rigorosa das ações humanas.


A nova contagem das horas, divorciada do ritmo natural do dia e da noite, se imporá paulatinamente, anunciando a modernidade. Sinalizadas uma a uma ao longo do dia, as horas iguais passarão a ritmar a existência nos centros urbanos em pleno desenvolvimento. Associadas a um novo tempo do trabalho, elas marcam, como dissemos, a transferência do poder da Igreja, como organizadora da vida civil, às autoridades laicas e à burguesia manufatureira (ver Landes, 1987: 125-126).


Os mesmos fatores que regem a transformação da temporalidade civil acionam também a transformação da temporalidade musical. Veremos que a musica mensurata, expressão dessa transformação, é igualmente o resultado de um processo de racionalização do tempo; que este também passa a ser computado através de uma pulsação constante que obriga à substituição de uma rítmica antes flexível e irregular, permitindo conseqüentemente uma sincronização precisa dos eventos musicais; que a representação analógica do tempo musical também dará lugar a uma representação abstrata e numérica; e, finalmente, que essa transformação pode ser igualmente
identificada a um processo de laicização da cultura urbana, materializada no abandono das leis divinas e naturais como organizadoras do tempo.



Racionalização do tempo musical: a musica mensurata


Durante os primeiros séculos de nossa era a elaboração e a transmissão da música se fizeram oralmente, sem intervenção da escrita em nenhum de seus estágios. Isidoro de Sevilha dirá no início do século VII: "Os sons, se não forem guardados pelo homem em sua memória, desaparacerão, pois nada os pode reter" (Etimologias, 15, 2). Pois é somente a partir do século IX que as inflexões do canto eclesiástico começam a ser representadas através da escrita neumática, um sistema de signos derivados dos gestos que, sem ainda precisar a altura dos sons, indicam de maneira esquemática o movimento melódico (7). Os séculos seguintes vêem surgir diversos métodos de notação musical já capazes de descrever os sons em suas alturas e relações intervalares, primeiramente utilizando letras do alfabeto e depois incorporando uma pauta de uma ou mais linhas. Esse processo culmina, por volta do século XII, no sistema dos neumas ditos diastemáticos (8), que chegou até nós através de um repertório conseqüente de peças a uma ou duas vozes, preservado nos manuscritos provenientes da abadia de Saint-Martial de Limoges (9)e no Codex Calixtinus de Santiago de Compostela (c. 1150). Um tal estágio de evolução da escrita musical pressupõe o abandono, ao menos em parte, do sistema de elaboração e transmissão oral da música. Composição e escrita musical passam então a se interpenetrar, tornando-se dois aspectos inseparáveis de uma única atividade. Disto decorre, desde então, uma implicação direta dos métodos de notação nos mecanismos de criação musical. Conseqüentemente, entender a lógica da notação musical é entender de certa forma o pensamento que guia a criação musical a partir desse período.


Mas será preciso esperar a passagem para o século XIII para que o parâmetro do tempo, que nos interessa aqui, seja integrado de maneira objetiva na notação musical. Um sistema de notação da metade do século XII, como o do manuscrito abaixo, pode nos dar uma visão global do fluxo dos sons no tempo e da sincronia aproximada entre os sons de duas melodias, no caso de uma polifonia. Mas ele não nos informa nada sobre a duração de cada um dos sons, sobre as possíveis relações de tempo entre eles. Pois o ritmo do canto é ainda um reflexo da métrica e da prosódia do texto, tributário da fala e da declamação e, como tal, flexível, fluido e irregular.


[codex calixtinus]

* * *



Notas
(1)
A escassez de fontes explícitas e a utilização equívoca do termo horologium, empregado nos textos medievais para designar tanto os relógios solares e hidráulicos quanto os relógios mecânicos, torna impossível nos dias de hoje uma datação segura.
(2)
Processo que implica evidentemente inúmeros e diversos conflitos sociais (ver Le Goff, 1977: 66-79).
(3)
Segundo formulação de Le Goff (1977).
(4)
Segundo as formulações de Murray (1978).
(5)
Instrumentos feitos de engrenagens que, sem indicar as horas nem funcionar continuamente como os relógios, emitem um sinal sonoro no momento programado, como um despertador. Utilizados nos mosteiros para regular os ofícios e atividades quotidianas (Landes, 1987).
(6)
A tradição cristã adotou durante toda a Idade Média a antiga divisão romana das horas — duas sequências de 12 horas temporais (ou desiguais), cada uma dela repartida em quatro seções principais, cujos limites são: o nascer e o pôr do sol (prima hora), a terça, a sexta, e a nona hora. As horas dos ofícios eram então distribuídas em função dessas quatro seções principais do dia e da noite (Dohrn-Van Rossum, 1997: 17-46).
(7)
O mundo greco-romano conhecera um tipo de notação musical baseado nas letras do alfabeto, descrito tardiamente por Boécio no século V. Essa forma de escrita musical cai porém em desuso, e a prática musical dos primeiros séculos da nossa era passa ao largo de toda representação gráfica do evento musical. A aparição da escrita neumática no século IX está provavelmente ligada à unificação da liturgia imposta por Pepino o Breve e por Carlos Magno. De fato, a difusão do rito romano, tomado então como modelo para todo o Império Carolíngio, implicava a assimilação rápida de um vasto repertório musical. Tornava-se assim necessário o desenvolvimento de um sistema mnemotécnico capaz de auxiliar nesse aprendizado (Hoppin, 1991 [1978]).
(8)
Neumas que explicitam a altura dos sons, contrariamente aos neumas mais primitivos, ditos quironômicos, in campo aperto ou não-diastemáticos, cuja escrita não fornece nenhuma indicação precisa da altura dos sons.
(9)
A atividade musical e literária desta abadia é intensa entre os séculos IX e XII e dá origem a um importante repertório tanto monódico quanto polifônico, a ponto de a musicologia hojereferir-se a uma "escola de Saint-Martial" (Ferrand, 1999).


* * *


[leia o artigo completo aqui]


* * *